André de Moraes
Maiká Schwade
As motivações eleitorais e econômicas são atualmente o vetor das iniciativas “públicas” no Amazonas. Mesmo sob a alcunha da sustentabilidade, esta só se efetiva quando se é verificada a viabilidade econômica do processo e/ou seus impactos políticos favoráveis para um grupo. A falta de um estudo responsável acerca da realidade das cidades e comunidades incluídas no Projeto de Lei nº 136 que propõe a criação de 28 municípios no Amazonas denuncia esse obscuro interesse por trás dos projetos.
Conhecemos de perto a realidade das cidades e comunidades no Amazonas, pelas pesquisas que temos realizado, nos últimos 5 anos, por meio da Universidade Federal do Amazonas - UFAM, via Núcleo de Estudos e Pesquisa das Cidades na Amazônia Brasileira - NEPECAB. A situação dos municípios é precária. Ausência de planejamento urbano, falta de assistência às comunidades rurais, despreparo do poder público para gestão territorial e interesses políticos divergentes do interesse público são alguns dos fatores desfavoráveis ao pleno direito à cidade e a terra. Seria realmente interessante difundir esse cenário para mais 28 novos territórios municipais?
Os estudos sobre a urbanização no Amazonas são insuficientes, o que dificulta a previsão de cenários futuros. Este é um tema caro à pauta de pesquisas científicas na região cuja importância emerge quando verificamos as tendências da dinâmica territorial atual no Amazonas. A instituição da Região Metropolitana de Manaus e iniciativas como as discussões sobre desmembramento do Amazonas em novos estados ou territórios federativos e agora da divisão territorial interna. Uma proposta legítima que estivesse para além de interesses eleitorais e econômicos seria pautada minimamente na vasta participação popular e na adoção de critérios com sólidas bases científicas e políticas, garantindo ampla discussão do projeto, com igualmente amplo processo pedagógico de consulta, e esclarecimento das reais implicações do desmembramento nas vidas daqueles que realmente sofrerão/desfrutarão das consequencias.
Alguns autores insistem na expressão “floresta urbanizada”; entretanto, o Amazonas não dispõe de uma urbanização que justifique instalação de novos municípios. Pelo contrário, com a criação de novos municípios automaticamente seriam instaladas novas cidades que, pelo conceito legislativo brasileiro, representam a sede da municipalidade. São poucas as comunidades rurais que possuem relações que se poderiam classificar como urbanas de forma a se justificar uma cidade cuja instalação mudaria bastante o modo de vida dessas populações. Dizer que isso representa o desenvolvimento é regredir para a já questionada supremacia do urbano sobre o rural. Seria nadar na contramão dos avanços conceituais que visam superam a dicotomia “rural x urbano” considerando as relações presentes entre estes espaços.
Por outro lado, a emancipação acarreta um processo de urbanização que, por sua vez, é apontado como co-responsável por vários processos de marginalização social. Por exemplo, desde a década de 1990, as “invasões” são responsáveis por grande parte do crescimento urbano das cidades da Amazônia Brasileira, onde são encontrados problemas sociais mais acentuados que nas áreas rurais, como a fome e o subemprego. Agravado pela inexistência de um planejamento urbano adequado, o projeto constitui-se como um convite não ao debate, mas à reprodução de um modelo que não tem respondido à demandas sociais, econômicas e ecológicas de forma combinada.
Paralelo a qualquer discussão sobre a Amazônia, cada vez mais ocorre a contestação do paradigma/mito do desenvolvimento. É necessário superá-lo, pois se trata de um conceito pautado na urbanização. Qualquer iniciativa para a Amazônia deve ter o compromisso de assumir a questão socioambiental como principal diretriz de planejamento, ordenamento e gestão territorial. O Zoneamento Ecológico e Econômico (ZEE) é um instrumento de gestão territorial que deve subsidiar políticas públicas. O fato de ainda não termos consolidado o ZEE do Amazonas e, mesmo assim, se insistir na divisão territorial do Estado representa um completo atropelo na diretriz socioambiental seguida pelo próprio Estado. Assim, remonta-se a velha situação dos interesses eleitorais e econômicos não somente desvinculados, mas sobrepostos às questões socioambientais.
A principal argumentação dos responsáveis pela proposta é que a emancipação aumentaria o montante dos repasses federais ao Estado. Sabemos que o corpo burocrático mínimo para se manter uma estrutura de gestão de um município é cara, os sete milhões que um pequeno município recebe, não garantem nem mesmo a manutenção de cargos (salários de prefeitos, secretários, vereadores, assessoria), quanto mais a manutenção de serviços e a instalação de infraestrutura como escolas, hospitais... o que realmente interessa à população. Geralmente, o que garante a manutenção desses serviços públicos importantes nos pequenos municípios são os recursos federais e estaduais investidos diretamente ou remetidos às prefeituras em valores proporcionais à população. Nada indica que possa haver transformações positivas na vida da população dessas comunidades com a constituição de novos municípios/cidades.
Mas o que realmente podemos notar nessa proposta é a falta de um estudo prévio de cada uma das comunidades, vejamos alguns exemplos:
Balbina, atualmente, é um distrito pertencente ao Município de Presidente Figueiredo, situado ao norte de Manaus. A maior parte das terras aí existentes são de jurisdição da União, cuja responsabilidade administrativa cabe ao Governo Federal. São eles: A Rebio Uatumã (de responsabilidade do ICMBio), A Terra Indígena Waimirí-Atroarí (FUNAI), assentamento PDS Morena (INCRA), entre outros. Já a Vila de Balbina é uma propriedade da empresa Amazonas Energia, de controle da Eletrobras. Fora isso, existem terras ocupadas por um grande empreendimento de mineração (Pitinga), que atualmente põe o Município de Presidente Figueiredo como terceiro maior em arrecadação do Estado do Amazonas e o maior em arrecadação
per capta. Tudo nos leva a crer que a emancipação é mais um dos artifícios criados para espoliar as riquezas do município, situação que vem ocorrendo desde sua criação, em 1982.
A antiga missão salesiana de
Iauaretê é uma comunidade indígena localizada no Rio Uaupés na fronteira com a Colômbia, pertencente ao Município de São Gabriel da Cachoeira. Por se tratar de uma terra indígena (T.I. Alto Rio Negro), é inconstitucional estabelecer uma sede municipal nessa localidade. Somando a isso, é importante pensar nos graves conflitos que podem se estabelecer a partir da instalação de uma estrutura de poder diferente das existentes entre os vários povos indígenas daquela região.
Novo Remanso, por outro lado, possui uma condição específica que justifica perfeitamente tal discussão. Trata-se de uma comunidade pertencente ao município de Itacoatiara que, no entanto, tem relações mais diretas com Rio Preto da Eva e Manaus do que com o município ao qual pertence. Nesse caso, a emancipação parece uma proposta coerente, mas devem ser avaliadas outras possibilidades, o que exige um estudo prévio e detalhado da situação. Estudo que parece não ter sido feito até o momento.
Como é possível notar, há várias questões que não emergem ao debate pelos diversos interesses. A falsa ideia de que o rendimento de um parlamentar se dá pelo volume de projetos é totalmente ilusória. A necessidade de alto volume de projetos e emendas só indica uma inadequação da legislação que, se bem costurada, não necessitaria de tantos “remendos”. As particularidades do espaço e do tempo amazônicos demandam que toda e qualquer atitude seja minuciosamente planejada e estruturada. Ainda é necessária uma ampla discussão e, por isso, fazemos esse alerta frente à perceptível pressa com que os propositores estão tratando desse projeto. Novamente, temos a impressão de que um grupo domina a discussão com interesse econômico/eleitoral, reproduzindo o modelo político-eleitoreiro que insiste em residir numa casa onde há muito tempo não deveria ser mais bem-vindo.
*Foto: NEPECAB (Vila de Balbina, janeiro de 2008).