quarta-feira, 22 de novembro de 2017

À Sandra Noda


Carta lida no velório de Sandra Noda, realizado na UFAM em 20 de outubro de 2017. 


À Sandra Noda ✿


Não gostava de ser chamada por títulos. Sandra “Foda”, como ela mesma dizia que ficara conhecida, era mais que firme. Falava alto, repreendia, gesticulava, distribuía broncas na aula. Não poupava ninguém. Milhares de estudantes a conheceram assim. Muitos a detestavam, outros aturavam, alguns compreendiam e simpatizavam. Longe de qualquer consenso, fazia parecer que isso era a manifestação empírica da sua declarada veia materialista, histórica e dialética.

Com formação interdisciplinar em filosofia, sociologia e ecologia, empunhava no discurso a abordagem sistêmica e fazia uma Ciência Ambiental a partir de seu interesse na Agricultura Familiar, sempre lembrando de Hugues Lamarche para fundamentar tal conceito.

A antiga salinha do Núcleo de Estudos Rurais e Urbanos da Amazônia – NERUA, na pretérita FCA/UFAM, parecia mais apertada para quem entrava já devendo um capítulo, uma leitura ou com uma frequência atrasada. A bronca era certa. Nas reuniões, parecia que se diluíam as relações e não se verificava divisão objetiva entre o profissional e o pessoal. Eliana (filha) ali era estudante e Hiroshi (companheiro) era pesquisador, ambos sujeitos à mesma “mais que firmeza” de Sandra.

Mas também aquela salinha acolhia e acrescentava. Fértil pela ampla experiência acadêmica e política de Sandra, formou gerações. Não pouca(o)s aprenderam com ela como fazer trabalhos de campo na Amazônia tenho sido mestra de muita(o)s de nossa(o)s mestra(e)s da UFAM.

Em idos de 2009, numa atividade de campo em Itacoatiara, descobri que, após o jantar, era de praxe a reunião para revisão detalhada do questionário. Talvez por uma complacência incomum da Sandra, não fomos até as 4h ou 5h da madrugada, como era de costume. Com o tempo que sobrasse, poderíamos fazer o que quiséssemos (inclusive dormir), mas no outro dia, de pé e cedo.

No Centro de Ciências do Ambiente – CCA/UFAM, sabíamos que era aula da Sandra, por ouvir sua voz nos corredores. Não por acaso, está citada nos agradecimentos da minha dissertação. “Conte-me mais sobre essa sua grande travessura”, dizia ela se referindo ao meu trabalho de pesquisa.

Foi mestra com dedicação, firmeza e altivez. Mas também era gente. Animou-se comigo ao violão algumas vezes. Sorria e fazia rir. Dançava bolero com a filha. Sim, eu gostava dela. A notícia de seu adoecimento me preocupou. Lembrei-me de seu comentário quando, há alguns anos atrás, a informei do falecimento da querida companheira Doroti Schwade: “essas notícias nos fazem pensar que está chegando a nossa vez...”. Não esperava que fosse tão cedo...

Sandra. Mais uma daquelas cuja imprescindibilidade descrita no poema de Brecht se concretizou. Foi-se levando o mínimo, pois sua opção pela docência permitiu que muito do que ela era tenha ficado entre nós. Além do legado, suas lembranças jamais farão com que deixes de estar viva em nossas mentes e corações.


Com carinho e gratidão,
André de Moraes ♥ Manaus, 20 de outubro de 2017, vazante do Rio Negro

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Raras Lições Para não Esquecer de Esquecer



(André de Moraes)

Esqueci
Que um dia
Por plena euforia
Me perdi
Mas caminhei
Sem muito pensar
Entreguei
Nunca pedirei de volta
Talvez jamais tenha sido meu
O momento do sorriso
Que de tão caloroso
Parecia abrigo
Assim era
Como mentira sincera
Que o tempo não cuidou
E se acabou
Quando vagueei na vil terra
Que nem mesmo
A mais forte memória
Havia de resistir em recordar
Posto que nada mais era
Se não a cratera
No fundo do tempo
Que, como documento,
Deixa-nos apenas a espera
Essa mesma
Que com o coração não coopera
Mantendo perto
Um sentimento encoberto
Tão fixo quanto o vento
Tão pouco quanto um cento
Tão errado quanto certo
Agora preso por ser liberto
Dizia ser fechado
Que trancado jazia
Mas estava sempre aberto...


Para Linda Luz.


sexta-feira, 30 de junho de 2017

Reações Adversas (Vide Bula)

(André de Moraes)


Diz
Como quem cala
Enterra a vala
Derruba a matriz
Cega, de fato, o juiz
Sem paredes faz a sala

Olha
Diverte o oprimido
Divide com a sorte o comprimido
Com suor a toalha se molha
No doce a língua enrola
Mais cervejas para o ouvido

Cheira
Sente o vestígio da presença
Disparada por ser intensa
Deixa sempre à beira
Fora a cor, é poeira
Que vai bem na venta
Sem desculpas nem licença
Pois quando suja é com estrela

Inala
Corrói-te a fumaça
Faz inveja pra traça
Faz do pulmão uma senzala
Da célula negra que rala
Quem disse que o prazer era de graça?
Que fugia da questão da raça?
Deita na rede da sala
Dá outro trago e embala
O respirar ainda te abraça

Deixa como está
Seguro
Embora não tão maduro
Mas afeito a suportar
O mesmo corpo quer amar
Alimentar-se do escuro
Dançar por qualquer barulho
Fazer de qualquer buraco seu lar
Até o próximo viajar
Para que não esqueça o futuro
Pois qualquer muro
A vida represada há de derrubar
Para te lembrar de navegar
Com o tempo prematuro...



sexta-feira, 23 de junho de 2017

Quando a Ciência Precisa de Fé


Esses dias, durante um levantamento bibliográfico, não facilmente encontrei um livro derivado das pesquisas do Projeto Manejo dos Recursos Naturais da Várzea – PRO-VÁRZEA, outrora facilmente disponível para baixar no antigo site do IBAMA. Isso me foi um indicador do declínio da pesquisa, em especial em questões ambientais, na Amazônia nos últimos anos.

Ingressei na UFAM em 2005, ano de publicação do livro que eu buscava. Até 2008, ano de conclusão do curso, comecei a compreender melhor a pesquisa científica e me identificar com aquilo. Segui. Projetos, atividades de campo, artigos, grupos de pesquisa, trabalhos técnicos, etc. Depois mestrado e trabalho tanto na Gestão em CT&I quanto na área ambiental. “Doutorado agora não, vou ter outras experiências”.

Depois, de repente (mas sem muita surpresa) a desastrosa vitória de José Melo nas eleições para Governador do Amazonas simplesmente acaba com mais de uma década de trabalho na construção e consolidação dos sistemas de CT&I e de Meio Ambiente no Estado (expondo também suas fragilidades). Depois, um golpe de Estado em nível federal termina de fuder tudo.

Sei que ficou ruim pra todo mundo que não está no esquema. Mas falando como quem vinha trabalhando nas áreas de CT&I e Ambiental (que não representam prioridades nas ações governamentais), as coisas ficaram críticas. Não há perspectiva nenhuma. E pior é o incalculável desperdício de recursos.

Exemplifico. Participei de um projeto para implementação de Unidades de Conservação Estaduais no Amazonas com um orçamento de milhões de reais cujos resultados hoje não são aproveitados, por conta das diretrizes políticas do Estado. Em 10 anos, muitxs formaram-se em nível de mestrado e doutorado no Amazonas, com bolsas da CAPES, CNPq e FAPEAM, e agora estão sem perspectiva nenhuma.

Daí, em várias conversas com colegas de ofício acadêmico, eu sempre cito que há 5 ou 10 anos atrás, com a formação que temos hoje, estaríamos tranquilamente trabalhando, principalmente no governo e terceiro setor. Ou seja, uma das conclusões é que eu e mais uma galera fomos formados para atuar em algo que simplesmente não existe mais.

Isso não é apenas uma discussão sobre empregabilidade. Mas sim, sobre como se pode desperdiçar o potencial de uma geração que se capacitou e está preparada para contribuir com a melhoria da vida como um todo. Como se distancia toda uma nova geração dessas áreas tão importante por não haver nenhuma perspectiva. Como se consegue inventar um tênue limiar entre resultados extremamente positivos de um programa governamental e uma fragilidade que pode desconstruí-lo da noite pro dia.

Não faltariam dados para comprovar os avanços nas áreas em discussão nos últimos 15 anos, ao mesmo tempo em que não faltam provas para atestar uma corrupção desenfreada no mesmo período. Adivinhem quem permanece e quem é desconstruído? A questão de fundo é de cultura política.

O prejuízo é muito grande. Não sei quando teremos um cenário semelhante ao de 2005, momento no qual se publicavam estudos bons e inéditos sobre a Amazônia feitos por cientistas brasileiros e da região e se ampliava o acesso ao ensino superior de forma a aumentar a presença de jovens oriundos de minorias (preto/indígena, pobre, nortista, etc.), como eu.

Por não me restar outra condição senão a de resistência, estarei com mais uma galera aí na luta para que não demore. Mas, no fim, não é uma questão de tempo cronológico. Nossa vontade é inversamente proporcional à "vontade política". Nossas mãos e corações ainda são poucos e todos os dias temos “baixas”, com colegas voltando para os seus/suas e/ou buscando qualquer coisa para trabalhar e sobreviver.

E, por a ciência não ser nenhuma última tábua salvação, como acredita-se, espero que xs colegas se encontrem em ofícios que lhes dê prazer, satisfação, realização e uma grana. Pensar que alguém que fez doutorado não pode ser jardineiro ou bartender é o mesmo que dizer que as pessoas que ocupam ofícios como esse podem até gostar de ciência, de pensar, refletir sobre a realidade, mas não tem direito a fazer um doutorado por que isso está restrito a quem se almeja cientista. Ou seja, não universaliza a proposta acadêmica.

Para quem insistir nessa de ciência, resta-nos assumir a contradição de lutar baseados na crença de que vai dar certo. Sim, tenhamos fé, cientistas! Isso por que se nos apoiarmos no próprio método científico para fazer uma análise dos dados e da conjuntura para as áreas de CT&I e Ambiental a médio e longo prazo no Brasil e Amazonas, os resultados certamente indicariam que não perdêssemos tempo investindo nisso, para fins de trabalho.

Como minha relação com a ciência não tem se restringe à dimensão estritamente laboral, insistirei mesmo me descobrindo em qualquer outro ofício que pouco dependa dela. Com todas as críticas possíveis, ela já ajudou muito a "sair das trevas mais sombrias" e apenas tentar desconstruí-la é criar um vácuo perigoso em um momento quando o "espírito das luzes*" mostra seus limites.

Não desejo voltar
Aos tempos de outrora
Mas simplesmente que o tempo de agora
Não me faça abandonar os meus desejos
Que, como certos beijos,
Compensam a demora...

André de Moraes
Manaus, pico da cheia de 2017.


*em alusão ao livro homônimo de Tzvetan Todorov

terça-feira, 6 de junho de 2017

9º Andar

(André de Moraes)


Um cigarro naquela janela
A cidade como uma tela
Virtuais abraços
Ô visita boa
Um devaneio a toa
Da festa que parecia boa
Um beijo lhe resta
Floresce a angústia
Que enternece a memória
Ao pensar na altura
Onde deixara a história
E na viagem
Não se completa a saudade
Que moveu o pensamento
Levando depois o pé
Na crença que ainda é
O já passado momento
Para o qual não existe instrumento
Que o faça voltar

Mas por que não voar
O passarinho amante do vento
Cantando no entorno da vida
Ainda crendo que solfejo
Faria despertar sonoro desejo
Base da sua lida?

Pequena verdade fria
Onde calor não sobra
Pois falha foi a obra
Que para acesso
Não deixou via
“Fechado”
“Ocupado”
Na porta se lia

Cansadas
Porém incessantes
Flores caladas
Se doam
Ecoam
Mas já havia ido
A primavera
Agora são
Eram
Ou serão
Apenas desculpas para varandas
De janelas
Elas
Como a banda
Cuja música ninguém canta
Pois é como preso sem sela
Que não foge dela
Pois pela parede se encanta
Mas depois de recusada a dança
Apenas traga
Assistindo na tela
A cidade que não cansa
Nem queda mansa
Mas ensina
Que uma boa sina
É a que nunca se alcança
Mas se desfaz como trança
Antes que a cabeça
Mesmo que amanheça
Ceda à vil semelhança...

quinta-feira, 27 de abril de 2017

Ali-vi-o Espinho

(André de Moraes)


Pareciam flores
Cheguei mais perto
Não sabendo ao certo
Pensei amores
No coração desabrocharam cores...
Era um espinho de pétalas coberto

Indaguei seu disfarce
Como podia enganar-me assim
Ousando melhor aparência para si
Na esperança que eu o abrace?

O espinho respondeu:
Minha vida é ferir
E depois ver o ferido partir
Não espera para entender como eu
Sem aquilo que o poeta nos deu
Poderia alguém atrair

Voltei para mim
Abracei o espinho
Dor ao invésde carinho
Suportei até o fim
Suei orvalho naquele jardim
Até que surgisse um ninho

"Não espere prazer"
Disse o espinho já comedido
Apontando para outro sentido
Mostrava rosas a florescer
Lembrando os olhos do doce viver
E na cúmplice pele, o dolorido

Eu, não mais arrependido
Habitei aquele lugar
Vi que mil vidas poderia ter tido
E em todas, o espinho havia de abraçar
Mesmo sem pétalas, sem disfarçar
Aquilo me seria abrigo...


Pelo tempo das muitas cumplicidades que abrigamos em nós ❤🍃

terça-feira, 4 de abril de 2017

Naquela Paixão Vi-vida

(André de Moraes)

A paixão que eu não vivi
Diz muito sobre mim
Cedi contínuo “sim”
Ao tempo que passou e não sofri
Como quando dormi
Enquanto acordada
Estavas dentro de mim

A paixão que não vivi
Não voltou
Foi-se com saudades daquela dança
Que nos envolveu como trança
E partindo
O laço
Desatou
Sorrindo
Chorou
Jamais saberia se indo
Renunciava amor

A paixão que não vivi
Ainda vive
Resiste
Mas não insiste
Talvez cansada do ócio
Que povoou nossos lábios
E não nos fez sócios
Do comum negócio
Que não fechamos
Pelo desperdício voluntário
Como apertado salário
Que se gasta com qualquer troço

A paixão que não vivi
Vi
Noutro seio
Sem rodeio
Rodava e torno de si
Feliz
Consegui sorrir
Mas não hábil atriz
Refiz
O trajeto do pensamento
Que de tão intenso
Nunca passou
Decidido ficou
Revisitando em contínuo o tempo
Quando o ali era aqui
E o depois, agora
Naquela hora
Entendi

A paixão que não vivi
Aconteceu
Não comigo
Mas com um outro eu
Que noutro seio encontrou abrigo
Ao invés de inimigo
A mim completou
E semeando o que sobrou
Colhi um destino
No qual não me confino
Pelo tu que em mim restou
Liberdade

E amor...