quarta-feira, 25 de março de 2015

O Lugar do Coração de Joana

André de Moraes




Há uns 15 dias atrás, indo para meu lugar de trabalho desses últimos meses (as balsas da "Manaus Moderna"), percebi que os camelôs lá de perto haviam sido removidos. Vários avisos pintados na parede verde de metal próxima do Mercado Público de Manaus indicavam o local para onde eles tinham sido realocados, com a esperança de serem procurados pelos clientes, se fiéis. Enquanto pensava na (re)produção do espaço urbano e o quanto estamos alheios a esse processo, deparei-me com um cartaz que dizia: "Aqui deixo meu coração no meu trabalho e sentirei muitas saudades dos me (meus) amigos e companheiros de trabalho durante anos. Onde estivermos seremos felizes. Tchau" [grifo meu]. Assinava Joana. Não pude deixar de pensar na condição de 'lugar' (conceitualmente falando) daquele espaço e todo o rico conteúdo sociocultural que o animara durante os duros, porém felizes, anos de trabalho. Lembrei-me que, de fato, ao passar por ali, não raro, havia relações outras que não apenas aquelas relacionadas à dimensão econômica. Uma pequena banca de bebidas ao som de uma 'sofrência' qualquer. Sorrisos que pareciam ser um refúgio à condição marginal daquelxs trabalhadorxs. Cumplicidades ao dividir a comida e/ou a cerveja. Tantas outras vivências invisíveis... Conversei com o vendedor de redes que, clandestinamente, resistia à saída. Desejei boa sorte na nova fase e ele agradeceu. Parecia querer entender sua desterritorialização e, na insuficiência das respostas, voltou para onde sentia-se parte. Agora sem Joana, tendia a ceder sua vida territorial ao anônimo transeunte que jamais compreenderia as tecituras sociais ali construídas. No camelódromo talvez até permanecessem próximxs. Mas agora na função de inaugurar uma nova história com o espaço que, provavelmente regulamentado em demasia considerando seus costumes, jamais seria o mesmo lugar. Ficava a memória. No caso de Joana, manifesta publicamente como forma de dizer que aquele espaço continuaria sendo um lugar para si e para xs amigxs onde, simbolicamente, deixava seu trabalho social e coração. Não conheci Joana, mas certamente senti-me próximo. Emocionei-me e, por um momento, temi que chovesse e estragasse o cartaz. Bobagem. Acabei agradecendo a ela pela experiência e segui para o trabalho. Por um breve momento, me arrependi de só ter parado ali quando tudo havia se ido. Meu dia teria menos cor, mas Joana me fez acreditar que o delxs, onde quer que estivessem, estaria feliz.


Foto: "Despedida de Joana" por André de Moraes (Centro de Manaus Próximo ao Mercado Público em março de 2015).

segunda-feira, 9 de março de 2015

O Passado em Desabraço

André de Moraes

















Ela deveria partir
E nada a ser feito senão acenar
Para a delicada lágrima a rolar
E conter o desejo do que haveria de florir
Nas lembranças semeadas no jardim
Mas que não mais deveriam brotar

A falta era um aviso breve
Daquele insistente fragmento de tempo
Que não se ia com apenas um lamento
Mas seria morada do sentimento nada leve
Tão comum quanto fogo em neve
E tão apagado quanto brasa ao vento

Um abraço afastou a dor
Todavia o desfazer anunciou sua volta
E como quem visita aos inimigos sem escolta
Neguei pela última vez àquele estridente clamor
De deixar falar a saudade calando o amor
Permitindo-a partir como quem um balão solta

Os sambas me faziam sentido
Na renúncia de todos os futuros momentos
Sentindo que, mesmo correndo, era lento
O afastar-se daquele desejo nada comedido
Agora rico em ausência e deslealmente vencido
Apenas deixava cair-se ao instrumento
A quem confessava seu vão pensamento
De saber onde estava, embora perdido

Não a pedi que ficasse
Antes me despedi como quem luta
Contra a própria vontade doce e bruta
Desmanchada ao menor sinal do desenlace
Tornando úmida e lacrimal a mesma face
Que lhe sorria mesmo na mais árdua labuta
Quando sua voz era toda a minha escuta
E seu menor pedido era para que eu entrasse

Flagrei-me conversando com o tempo
Interessado no meu passado este me contava
De quantas muitas horas tudo aquilo se formara
E o quanto aquele “embora” lhe era documento
Atestado de que não fora em vão nenhum momento
E elevou aquela sofrida ida ao status de rara
Revelando-me que seu segredo que a tudo sara
Sempre se iniciaria com algum sofrimento...


Ilustração: Kerolayne Kemblim.