sábado, 29 de janeiro de 2011

Em um Cantinho do SUS

Maiká e Luiz Augusto presenciaram as últimas batidas do coração de sua mãe, minha querida esposa Doroti. Cheguei logo em seguida ao Hospital João Lucio em Manaus. Os meninos me abraçaram e um deles me disse: “Papai, mamãe morreu como sempre quis. Em um cantinho do SUS”. Doroti teve um AVC no amanhecer do dia 02 de dezembro de 2010 aqui casa em Presidente Figueiredo, quando se preparava, em clima de festa, para ir a Manaus providenciar os últimos detalhes do casamento de Maiká e Michéli e comprar seus novos óculos. Levada imediatamente ao hospital local foi logo encaminhada para o Hospital João Lúcio em Manaus. Como o seu caso foi considerado irreversível, não a transferiram mais para a UTI, mas foi mantida no Pronto Socorro, onde a família teria acesso limitado até a última batida do seu coração. Só no fim da tarde do dia seguinte, por insistência de amigos foi transferida para fora do Pronto Socorro, no cantinho de um salão coletivo, onde alguém da família pode marcar presença permanente. Não demorou mais de meia hora ali quando faleceu.
Doroti foi uma das iniciadoras da luta pelo SUS no país. Como indigenista do CIMI participou das três primeiras Conferências Nacionais de Saúde, após a ditadura militar, onde a sua voz se levantou, insistente e vigorosa, em favor da criação de um sistema único de saúde, o que viria a favorecer principalmente os mais pobres.
Em sua vida nunca aceitou tratamento via privilégios. No último ano teve sérios problemas de visão. Sintoma mais forte de que algo não estava em ordem no seu organismo. Em junho procurou, através dos trâmites normais, o médico do posto de saúde do bairro. Este a encaminhou ao oftalmologista da Prefeitura de Presidente Figueiredo, pago pelo SUS, onde a encarregada do agendamento adiou a sua consulta para o mês seguinte. No mês seguinte seguiu os mesmos trâmites e mais uma vez a consulta foi adiada para o próximo mês. O mesmo ocorreu até outubro, quando desanimada, não quis mais se consultar aqui. Neste momento eu interferi e a acompanhei. Aproveitaria para fazer minha consulta também, pois há mais de cinco anos não havia feito. No novo encaminhamento o médico do posto sublinhou duas vezes “com urgência”. Mas, chegando ao centro de atendimento, a secretária de agendamento novamente nos disse que só poderia ser atendida em dezembro. Ante a minha insistência sobre o encaminhamento “com urgência ” do médico do nosso posto, a atendente nos disse: “Então vão ao hospital e falem com seu Gilson!” – mostrando claramente que existia um esquema 2 de encaminhamento, oculto ao comum dos mortais. De fato, embora Doroti não quisesse, dirigi-me ao hospital onde procurei o Sr. Gilson. Mostrei-lhe o encaminhamento médico, ao que ele me respondeu: “Na próxima semana o Doutor não vem, mas na segunda semana de novembro estará”. E me solicitou que lhe ligasse um dia antes de sua vinda para ele fazer o agendamento. Foi o que fiz. Doroti se apresentou na hora marcada, mas não foi atendida porque o oftalmologista não compareceu ao trabalho. A consulta foi então adiada para a última semana do mês, quando, finalmente, foi atendida. Já era tarde, o AVC a vitimou na manhã em que iria a Manaus corrigir os seus problemas de visão.
A minha consulta estava agendada para o dia em que aconteceu o AVC de Doroti. Obviamente não compareci. Durante o velório de Doroti o Sr. Gilson procurou, espontaneamente a família para remarcar a minha consulta, atitude totalmente diferente da que foi utilizada com minha esposa Doroti, durante meio ano. Na oportunidade do meu atendimento constatei e me foi confirmado por outro favorecido que um esquema 2 de agendamento, desconhecido até pelo médico do bairro, prioriza “clientes especiais”. Havia ali vereador, empresário, irmão do agendador 2, chefe de gabinete de vereador, todos agendados pelo Sr. Gilson e não pela pessoa encarregada no centro de atendimento a qual sequer marcou presença no local das consultas.
Algo está errado!

Casa da Cultura do Urubuí / Presidente Figueiredo / 26 de janeiro de 2011
Egydio Schwade

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Circundantes Circunstâncias

O sentido de tudo isso não cabe em mim
É preciso me expandir, é preciso me aumentar, é preciso me redimir
Os sonhos que outrora me era motivos, agora me são lembranças
As areias que me eram bonitas, agora vagam pelo devir
De uma nobre conceira na consciência que não mais dança, não mais sabe sentir


Vivo pelo que me parece sem cor
Contemplo o que me esmorece aos poucos, certo do fim
Atento àquilo que me deixa punhados de vida
Volto ao mesmo disperso fino, claro e lento e não me vejo em mim
Permito vozes e gestos, sabores e restos, descanso e lida, flores e jardim

A busca pelos sonhos (in)contidos descobre a dor
Mas as pretensas pegadas insistem em não existir

O movimento me escapa das mãos mas não se furta ao coração
Encaram doses cavalares de esperança em proseguir
Na porção de contratempo, falo de desistência em vão
     e prossigo com os que, ao sentir, vão vendo

...

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

E Assim (não) Caminha a Geografia

Em meio aos debates sobre a questão profissional do Geógrafo (bacharel), fiz uma carta aberta à comunidade geográfica do Amazonas. Motivei-me a escrever o texto pelo fato de que o Departamento de Geografia da UFAM, pelo qual me formei, não tem dado a devida atenção a questão.


Carta Aberta a Comunidade Geográfica do Amazonas
E Assim (não) Caminha a Geografia...


Na última segunda-feira (17/01/2011), recebo a notícia que ocorreram modificações na grade curricular dos cursos de Geografia da UFAM. Vejo as mudanças tanto na licenciatura, que me parecem ter ocorrido em consonância com indicações do MEC, quanto no currículo do Bacharelado. Atenho-me a minha delimitação profissional (Bacharel) e percebo que na verdade não houve mudanças. Frente ao entendimento do Departamento de Geografia (DEGEO) da UFAM de que não foram necessárias grandes modificações/melhorias no currículo, me preocupo.

Formado em Geografia Bacharelado no início de 2009, desde meados de 2007 venho acompanhando as discussões acerca da questão profissional no âmbito nacional compondo, inclusive, o GT Assuntos Profissionais da AGB Nacional (DEN 2008-2010). Existem várias questões em aberto acerca do Geógrafo Bacharel e seu mal resolvido mercado de trabalho. Com o acúmulo sobre o tema que já existe, é necessário que este seja considerado em momentos como a discussão do projeto político-pedagógico, inclusive a reestruturação do currículo. Entretanto, infelizmente não parece ser o que aconteceu no DEGEO/UFAM.

Como bacharéis egressos do curso, eu e alguns colegas compartilhamos angústias de profissionais formados que não tem espaço no chamado “mercado de trabalho”. A angústia aumenta quando penso que tentei fazer tudo o que estava ao meu alcance para garantir uma boa formação e isso hoje não é garantia de nada. A pós-graduação passa a ser o caminho de uma qualificação para adiramos um pouco mais a mesma angústia. Mas, e se não quisermos ser professores-pesquisadores de uma universidade ou instituto de pesquisa? Nesse caso parece que nos resta pouco, muito pouco em termos de opções. Nas empresas privadas, nossa inserção é quase zero. Concursos públicos? Conto nos dedos de uma das mãos as vagas que foram abertas para geógrafos na última década no Amazonas. Será se realmente não precisamos repensar o Bacharelado em Geografia?

Simplesmente não entra na minha cabeça que se tenha feito mudanças no bacharelado em geografia sem uma mísera consulta ao Conselho Regional de Engenharia ‘Arquitetura’ e Agronomia – CREA-AM onde somos registrados profissionalmente. Além disso, será se na “discussão” foram considerados fatores como 1) a questão que constam na Resolução 1.010/2005, que mudou totalmente a forma de reconhecimento de atribuições profissionais e tirou nossas competências em tecnologias? 2) A quase aprovada criação do Conselho de Arquitetura e Urbanismo – CAU que prevê uma reserva de mercado para questões urbanas deixando-nos a ver navios? 3) A carga horária insuficiente para consolidar atribuições no âmbito do sistema CONFEA/CREA?; 4) A questão dos estágios obrigatórios para bacharelado, tema que inclusive foi pauta de um evento recente na UFAM (e eu espero que o DEGEO tenha participado) e deveria ser uma forma de preparar o estudante para ser um profissional aproximando-o desse meio?; isso para citar algumas das questões mais importantes. Se não for para discutir essas questões, qual o real propósito de se formar bacharéis? Para encher a cabeça dos estudantes sobre as possibilidades de atuação e se omitir na hora de contribuir para sua efetividade?

Tenho meu diploma na mão e sou registrado no CREA-AM, mas não existe perspectiva de trabalho. Sou um profissional de direito, mas não de fato. Com isso, realmente me senti desamparado pelo departamento que me formei ao me deparar com sua omissão ao não estar sensível a situação dos seus egressos. Em conversa com alguns colegas também egressos do curso, percebi que não somente eu me sinto dessa forma. Não raro falo e ouço falar que se quisermos uma perspectiva profissional que vá para além das possibilidades é mais fácil fazer outro curso de graduação. Entretanto, sei que existem professores no DEGEO/UFAM que são sensíveis a essa questão. Sei também que é possível pensar nessas questões e fazer alguma coisa. Por isso, ainda tenho expectativas de que esse texto possa ser objeto de auto-reflexão crítica por parte do corpo docente do DEGEO/UFAM.

Penso que o mínimo a ser feita é um seminário para debater a questão. Convidar estudantes, professores, egressos e profissionais com experiência e acúmulo na discussão. Acredito que a maioria dos professores do DEGEO/UFAM não tem acúmulo no tema até porque nunca dependeram de atuação profissional (bacharel) e talvez nunca tenham sentido necessidade de se aproximar dessas questões. Todavia, mesmo se isso for fato, não é justificável visto que se propuseram a formar esses profissionais e, por isso, deveriam obrigatoriamente estar inseridos na discussão. O DEGEO/UFAM é o único curso de bacharelado em geografia do Amazonas e tem essa responsabilidade e, por acreditar na sensibilidade dos meus professores, fico na expectativa de que se supere esse status de omissão para uma efetiva contribuição em nossa formação profissional.

Manaus, 19 de janeiro de 2011.


André de Oliveira Moraes
Geógrafo, egresso do curso de Bacharel em Geografia da UFAM.

Fonte da figura: http://conhecimentopratico.uol.com.br/geografia/mapas-demografia/24/artigo181157-2.asp

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

As Implicações Socioambientais da Contrução da Usina Hidrelétrica de Belo Monte

Numa discussão na ListaGeografia sobre a polêmica em torno da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, a Geógrafa Elaine Regina Branco contribuiu de forma substancial para o debate. Com sua autorização expressa, publico sua ótima intervenção para subsidiar as discussões e promover a "cidadania extendida" com a geração e socialização da informação, que é proposta desse blog.


As Implicações Socioambientais da Contrução da Usina Hidrelétrica de Belo Monte
 

Caro Edson e colegas do grupo, é com muita satisfação que dou as minhas contribuições ao debate sobre Belo Monte. Um pouco que vou escrever aqui integra um artigo que escrevi sobre Belo Monte.
Estive no Pará, conversei com algumas pessoas, mas não é só isso que ampara os meus argumentos sobre o assunto. Minhas afirmações não se baseiam em conversas com meia dúzia de pessoas. São anos de estudos, vivência em comunidades, dados e informações científicas, legislação e o mais o que vejo ser mais precioso: a articulação da maioria de indígenas e ribeirinhos contra Belo Monte. Mais precioso porque ainda acredito no Brasil, na cidadania, nos direitos fundamentais do brasileiro, como o que está em cheque, o de ir e vir dessas populações. Aliás, respondendo a indagação da amiga Luciana e aproveitando para denunciar: os ribeirinhos do rio Madeira têm o prazo até 15 de fevereiro de 2011 para deixarem o local. Além do direito individual, existem outros que serão violados com a construção de Belo Monte: o de memória, econômico/cultural, político e ambiental.
Não quero vangloriar a minha formação, mas o fato é que, nós geógrafas e geógrafos, não compreendemos o "meio-ambiente" e sim a o "ambiente" como um todo, homem e natureza integrando e transformando o espaço. O grande Franz Boas, antropólogo, geógrafo de formação, nos deu uma importante contribuição útil ao nosso debate que é a noção de "Relativismo Cultural". Tal noção, trazendo-a para a nossa discussão, retrata a diferença de olhares sobre uma mesma questão devido aos valores das diferentes culturas, ou seja, no caso, o que significa desenvolvimento para você, pode não ser o mesmo para uma comunidade indígena ou população ribeirinha. O valor das coisas, das mercadorias, produtos e serviços para você pode não ser o mesmo para os outros povos. Compreendi bem isso quando ouvi um Cacique Kayapó dizendo que o rio é o "seu supermercado, sua venda, seu açougue".
Diante dos dois pontos de vistas diferentes, temos um empate: de um lado nativos e ribeirinhos defendendo seu modo de vida e cultura, do outro, políticos, pessoas, como o nosso amigo Edson, que acreditam que a construção da hidrelétrica trará benefícios ao país. Já até ouvi falar que o direito de uma minoria não pode sobrepor aos interesses da maioria do país. Neste caso, primeiramente é preciso recorrer a história e procurar saber o por que hoje esses povos são minorias. Daí outra questão para refletirmos: o fato de serem minorias não deveria ser motivo para respeitarmos as suas culturas, cultivar as diferenças para o crescimento da democracia e diversidade? Alguns insistirão: Mas o Brasil precisa se desenvolver! São milhões de brasileiros!
Nestes termos concordo que o Brasil precisa se desenvolver e não progredir. Desenvolvimento e progresso são conceitos bem diferentes e fundamentais para compreendermos o que queremos para o nosso povo e país. Enquanto o desenvolvimento é sinônimo de melhoria de qualidade de vida da população independente da cultura, o progresso remonta a evolução de uma sociedade. Seria como se houvessem degraus onde no mais baixo estariam as sociedades primitivas, almejando pelo último degrau: de uma sociedade capitalista ocidental. O progresso está intimamente ligado ao sistema capitalista: benefício de meia dúzia em detrimento da maioria. Temos de ter muito cuidado com isso!
Estive na capital do Pará, Belém. Em todo canto vemos lixo jogado, esgoto a céu aberto, palafitas sobre os esgotos, hospitais cheios devido às péssimas condições sanitárias. Isso é desenvolvimento? Os investimentos em hidrelétricas, como a de Tucuruí, trouxeram qualidade de vida para a população? Sabemos que o povo paraense paga o maior imposto sobre eletricidade, suas contas são as mais caras do país. Também sabemos que a Albrás consome cinco vezes mais que toda população do Pará e que, segundo R.R. Bahia, tem um subsídio que corresponde a metade do valor do custo da hidrelétrica de Tucuruí. Isso é progresso ou desenvolvimento?
Pois bem, ainda haverá aqueles que dirão: mas as hidrelétricas é que geram a energia para as indústrias e outros setores que, por sua vez, geram os empregos para população. Então, esta na hora de começarmos a pensar na relação custo-benefício desses grandes projetos. Dentre os benefícios, incluímos os empregos gerados. É mais ou menos como a História do Pescador Mexicano, quem não conhece, deveria conhecer, vale a pena! Pensemos na soja. Qual a área da floresta amazônica desmatada para o plantio da soja? Quantos empregos foram gerados? Sabemos que nessa região prevalece o sistema agro-químico de produção da soja. Segundo Ortega (2003), tal sistema não gera nem a metade dos empregos gerados por outros sistemas e obtém pelo menos o dobro do lucro. A floresta em pé poderia ter gerado muito mais emprego, como as reservas extrativistas têm gerado, do que ela destruída, gerando meia dúzia de empregos.
Outro ponto crítico, tema da discussão aqui: as hidrelétricas. Pensemos na relação custo-benefício de uma hidrelétrica. Primeiro, é preciso saber que o custo da construção de uma hidrelétrica é repassado para nós, cidadãos brasileiros. Tirando o exemplo da hidrelétrica de Tucuruí, da qual já podemos tirar boas conclusões, pensemos no geral dos projetos de hidrelétricas a serem construídos na região amazônica. Falamos não só do custo econômico, mas também do ambiental e social. Tenho referências que podem nos ajudar. Francisco Del Moral Hernandez, mestre em energia pela USP, pesquisador do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP, nos mostra que a vida útil de uma hidrelétrica é de aproximadamente cem anos, dado importante, não levado em consideração na elaboração dos EIA-RIMAs. Outros dados fornecidos pelo autor: Para cada 33.000 km² de reservatórios, o CH4 emitido é próximo do gerado por combustível fóssil da grande São Paulo; a eficiência de 90% da turbina e do gerador cai 50% no caso de vazão da água. Se pensarmos na localidade, por exemplo, onde se planeja construir Belo Monte, temos mais um dado importante apresentado por Hernandez: não existe chuva suficiente para complementaridade hidrelétrica no sul da Amazônia, fato com que contam os engenheiros para a eficiência de Belo Monte. Outro exemplo: Balbina. A liberação de dióxido de carbono e metano é superior à de uma usina térmica de mesmo potencial energético. Um pesquisador do INPA, P. Fearnside, relatou no caso de Balbina, área inundada prevista era de 2369 Km² e que hoje que hoje são mais de 3000 km². Relata também que Balbina custou U$750 milhões, sem incluir o custo de transmissão até Manaus para produzir míseros 100 megawatts. Foi um desastre ambiental que além inundar terras indígenas, causou a morte de inúmeras espécies de peixes e árvores, destruindo a sustentabilidade dos povos do local. Quais seriam os benefícios? Dados do INPA, em média são 2,7 empregos gerados por Gwh fornecido. Então eu pergunto: Por que o Brasil não investe em outras fontes de energia, como a eólica e solar, viáveis para o país? Seria por que o lucro das empreiteiras diminuiria com tais projetos? Dados da Aneel mostram que a produção de energia eólica no Brasil é de 600MW e existem projetos para um potencial estimado de 2,139.7 MW.
Nessa semana vimos o caos na região serrana do Rio de Janeiro. Quantas mortes serão necessárias para enxergarmos que não é possível mais esse modelo de progresso fantasiado de desenvolvimento para o Brasil? Só estando entre os desabrigados para entender o ambiente como um todo? No futuro, o aquecimento global provocado pela emissão de metano desses empreendimentos serão o suficiente para nossa própria cova num desses desmoronamentos.

Elaine Regina Branco
Geógrafa, Mestre em Geografia pela FCT/UNESP
Autora dos trabalhos: "O rio da minha terra: imaginário social, saúde e ambiente" (2002) e "Encontros, desencontros e reencontros na na trajetória da comunidade remanescente do quilombo Caçandoca:identidade e territorialidade"(2007)

Fonte da Figura: http://vozsocial.blogspot.com/2010/06/um-lago-de-duvidas-belo-monte.html
P.S.1: O texto foi publicado da forma original como consta na listageografia.
P.S.2: A figura não compõe o texto originalmente, sua idéia contrária ao empreendimento refletem a posição política explícita do editor do blog, Andre de Moraes.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

A Stultifera Navis amazônica

A Stultifera Navis amazônica*

Juliana A. Alves

Mais cedo eu havia marcado uma consulta com um médico. É mais fácil assim quando se tem dinheiro e se pode comprar um serviço.
Nem imaginava que à tarde lá estaria eu lendo sobre a loucura na Idade Clássica nos corredores do HUGV. Concentrada na leitura, em meio a gritarias de criança, pequenos bate-bocas e avisos, mal percebo que uma senhora senta-se ao meu lado. Apenas, escuto alguns murmúrios e o barulho de alguns papéis sendo revirados numa sacola de plástico. Aterrizo, quando sinto que meu braço foi tocado. Saí da leitura e virei em direção ao toque. Vejo uma senhora com traços marcantes de uma idade avançada, morena, descabelada e com um leve aspecto de desleixo. Ela me olha e murmura algumas coisas que não consegui entender. Ela repete mais claramente. Finalmente, entendo. Ela deseja se consultar com um médico ginecologista. Até aí não sabia no que poderia ajudar. É quando eu entendo, em meio a algumas palavras, “eu não sei o nome do médico [...] mas, tem em algum lugar desse papel aqui”. Canalizo um pouco mais da minha atenção nesse momento. Ela me disse: “eu não sei ler, vizinha”. Levanto-me e prontifico a ajudar. Encontro o nome do médico e pronuncio a ela. Ela me fala dos muitos exames que fez e dos que ainda irá fazer. Mostra-me os muitos papéis com explicações sobre os exames. Os quais ela não entende. Tento resumir e explicar. É quando ela puxa de dentro da sacola de plástico a cédula de identidade. Velha, amarelada e corroída. No campo da assinatura datilografado leio: NÃO ASSINA. Um tanto chocada me perco no horizonte que se encontra ao meu alcance. É quando ela muito inocentemente bate na barriga e solta “eita, barriga grande...parece até que estou grávida”. É quando meus olhos percorrem seu corpo. Corpo pequeno atrofiado similar ao de uma criança de 12 anos, de baixíssima estatura e com resquícios de um padrão alimentar precário. Fiquei por alguns segundos tentando refletir em como a Saúde Pública poderia resolver o problema do analfabetismo. Pensei em cartilhas com desenhos explicando os métodos de exames ou mesmo em vídeos explicativos. Lá pelas tantas a senhora a senhora se despede, se afasta e vai embora. Já distraída e pensando longe. Escuto histórias que ecoam pelos corredores. Por fim, escuto uma voz firme com linguagem sofisticada. É uma enfermeira tentando acalmar, “iludindo”, aquelas passivas pessoas sobre a ausência do médico. É, é isso mesmo. Os médicos faltam, não honram com seus horários e se utilizam de gripes de mais de uma semana. É sabido que a gripe comum mata. E mata muito mais do que a polemica H1N1. Mas, é somente os pobres que tem gripes de 2 e no máximo 3 dias?! Lá estava ela relatando que o atendimento e a estrutura do HUGV são de excelente qualidade. Logo após, ter dito que ‘hoje só estamos com 2 especialidades: pediatria e oftalmologia’. Dizendo que, até mesmo na UNIMED, onde é seu plano de saúde, agüenta “chá de cadeira”. Que falácia!
Não conheço a estrutura da UNIMED e nem tampouco conheço tecnicamente a estrutura do HUGV. Mas, a princípio me pareceu precária. Maquiada. Um bolo com cobertura atraente e massa de péssima qualidade. O atendimento para com aqueles que pagam por este serviço é péssima. Logo, com profissionais que, mais do que os demais, deveriam resguardar valores humanitários com seu próximo. A Stultifera Navis se perdeu pelos rios amazônicos e transformou a própria cidade num grande problema de Saúde Pública.
* A nave dos Loucos ou dos néscios (no original alemão, Dás Narrenschiff, em sua tradução latina, Stultifera Navis) é uma obra satírica e moralista publicada em Basilea em 1494 e escrita pelo teólogo, jurista e humanista conservador de origem alsaciano e cultura alemã Sebastian Brant (ou Brand).
Fonte da nota e da figura:http://pt.encydia.com/es/A_nave_dos_n%c3%a9scios