segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Ainda bruto. Ainda sem título.

(André de Moraes)


Na memória
Me habita o muito
Que se torna pouco
Se sem intuito
Se sem história

Da vida que resta
Faço luto
Mas também festa
Estampo como tatuagem na testa
Um tanto de tudo
Que já compõe o meu mundo
Mas também aquilo que ainda se gesta
Nasce, assim, o transitório e permanente ciclo
Pobre em dinheiro
Doce e faceiro
Mas de aventuras rico
Pois de pico em pico
Aparece um coração parceiro

O caminho
Que nos foi comum
Deu-me vontade de mais um tempinho
Mas, por acaso,
Aquele ninho
Tornou-se pequeno
E naquele sereno
Habitou o partir
Sem a valsa azul turquesa
Que outrora posta a mesa
Fez outro caminho se abrir


A conversa
De interrogações maiúsculas
Após algum bater na porta
Recolheu sua pressa
Questionou-se se realmente era essa
Sua melhor forma
Se calou
Em movimento reflexivo
Fez-se mais ouvidos
E da saudade emprestou
O costume do silêncio
E assim quedou por vários tempos
Quando, em contentamento,
Finalmente repousou

Mas viva
Era a herança do momento
Mais conhecida como lembrança
Se permitiu sobrevivência
Em virtual cadência
Doando-se ao tempo
Mas, pelas outras vivências
De semelhante teor e essência
O caminho era esquecimento

Após o tempo
Passada aquela face da saudade
O passado foi, enfim, absolvido
Des-envolvido
Pensava na carta que lhe remeteria
Com a notícia da superação
Da boa, porém, chata paixão
Que havia nos tornado noite
E, mesmo sem aquele cúmplice amanhecer,
Novamente era dia

Aquela outrora revelia
Hoje era parte de um bom viver

Não passando da intenção
Virei destinatário do destino
Remetente apenas de gratidão
A carta que me convencia que deveria existir
Foi parida por outras mãos
Justo aquelas que, quando, segurei
Fez-me perder um pouco do chão
Tendo o encontrado muito depois que as larguei
Agora nesse mesmo chão
À vontade
Deitado, leio as boas saudades
De recente tempo
E longe de qualquer lamento
Faz sorrir frente ao primeiro ano da nossa idade
Que se refez na memória
E como toda boa história
Se reinventa com o tempo
Se reproduz na saudade...


#haikaibalão
#baseadoemtatosreais

quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

Perdido Carreirista do Barril

André de Moraes
 
 
Um dia pensei ser utopia
Toda aquela esquerda
Que carregava sua bandeira
Como quem quer fronteira
Mas do discurso da liberdade não abre mão
"Venha fazer a revolução!"
Diziam, insistiam, doutrinavam
Sem carinho ao alheio coração
Simplesmente pisavam
Em toda a construção
Que mesmo vendo as ruínas
Não exitavam sacar da bainha
A arma letal
Que atinge a massa
Nas esquinas, na praça
Como se as expusessem num varal
"Negocia-se opiniões, ideologias e dinheiro também"
Conveniências na camaradagem
Nada vem do além
E pela porta do poder
O luxo gerado do lixo
Não entenderam a revolução dos bichos
Nem querem
Sua resistência
Sujeita à toda sorte de conveniência
Nada mais diz
Suas luta nas trincheiras
Com pausa para um BigMc
Apenas para os líderes
A massa que leve lancheira
Vende-se
Um perdido
Que muito lutou pelo nosso abrigo
Mas que agora louva maquiavel
Do meio pro fim
Se tornou cruel
Com o movimento de onde saiu
Partiu
Não quer voltar
Dialogar?
Não.
Negociar passou a ser a palavra
Sua fisiologia
Está melhor que nunca
Digere qualquer porcaria
Coisas boas do presente?
Uma pena
Nada demais
E aquelas mais gerais
Não cabem nesse poema
Utópico e crítico
Materialista e não mítico
Onde minha cara mostro
Te vejo na luta contra o sistema
Todavia
Em lados opostos


...

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

À Sandra Noda


Carta lida no velório de Sandra Noda, realizado na UFAM em 20 de outubro de 2017. 


À Sandra Noda ✿


Não gostava de ser chamada por títulos. Sandra “Foda”, como ela mesma dizia que ficara conhecida, era mais que firme. Falava alto, repreendia, gesticulava, distribuía broncas na aula. Não poupava ninguém. Milhares de estudantes a conheceram assim. Muitos a detestavam, outros aturavam, alguns compreendiam e simpatizavam. Longe de qualquer consenso, fazia parecer que isso era a manifestação empírica da sua declarada veia materialista, histórica e dialética.

Com formação interdisciplinar em filosofia, sociologia e ecologia, empunhava no discurso a abordagem sistêmica e fazia uma Ciência Ambiental a partir de seu interesse na Agricultura Familiar, sempre lembrando de Hugues Lamarche para fundamentar tal conceito.

A antiga salinha do Núcleo de Estudos Rurais e Urbanos da Amazônia – NERUA, na pretérita FCA/UFAM, parecia mais apertada para quem entrava já devendo um capítulo, uma leitura ou com uma frequência atrasada. A bronca era certa. Nas reuniões, parecia que se diluíam as relações e não se verificava divisão objetiva entre o profissional e o pessoal. Eliana (filha) ali era estudante e Hiroshi (companheiro) era pesquisador, ambos sujeitos à mesma “mais que firmeza” de Sandra.

Mas também aquela salinha acolhia e acrescentava. Fértil pela ampla experiência acadêmica e política de Sandra, formou gerações. Não pouca(o)s aprenderam com ela como fazer trabalhos de campo na Amazônia tenho sido mestra de muita(o)s de nossa(o)s mestra(e)s da UFAM.

Em idos de 2009, numa atividade de campo em Itacoatiara, descobri que, após o jantar, era de praxe a reunião para revisão detalhada do questionário. Talvez por uma complacência incomum da Sandra, não fomos até as 4h ou 5h da madrugada, como era de costume. Com o tempo que sobrasse, poderíamos fazer o que quiséssemos (inclusive dormir), mas no outro dia, de pé e cedo.

No Centro de Ciências do Ambiente – CCA/UFAM, sabíamos que era aula da Sandra, por ouvir sua voz nos corredores. Não por acaso, está citada nos agradecimentos da minha dissertação. “Conte-me mais sobre essa sua grande travessura”, dizia ela se referindo ao meu trabalho de pesquisa.

Foi mestra com dedicação, firmeza e altivez. Mas também era gente. Animou-se comigo ao violão algumas vezes. Sorria e fazia rir. Dançava bolero com a filha. Sim, eu gostava dela. A notícia de seu adoecimento me preocupou. Lembrei-me de seu comentário quando, há alguns anos atrás, a informei do falecimento da querida companheira Doroti Schwade: “essas notícias nos fazem pensar que está chegando a nossa vez...”. Não esperava que fosse tão cedo...

Sandra. Mais uma daquelas cuja imprescindibilidade descrita no poema de Brecht se concretizou. Foi-se levando o mínimo, pois sua opção pela docência permitiu que muito do que ela era tenha ficado entre nós. Além do legado, suas lembranças jamais farão com que deixes de estar viva em nossas mentes e corações.


Com carinho e gratidão,
André de Moraes ♥ Manaus, 20 de outubro de 2017, vazante do Rio Negro

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Raras Lições Para não Esquecer de Esquecer



(André de Moraes)

Esqueci
Que um dia
Por plena euforia
Me perdi
Mas caminhei
Sem muito pensar
Entreguei
Nunca pedirei de volta
Talvez jamais tenha sido meu
O momento do sorriso
Que de tão caloroso
Parecia abrigo
Assim era
Como mentira sincera
Que o tempo não cuidou
E se acabou
Quando vagueei na vil terra
Que nem mesmo
A mais forte memória
Havia de resistir em recordar
Posto que nada mais era
Se não a cratera
No fundo do tempo
Que, como documento,
Deixa-nos apenas a espera
Essa mesma
Que com o coração não coopera
Mantendo perto
Um sentimento encoberto
Tão fixo quanto o vento
Tão pouco quanto um cento
Tão errado quanto certo
Agora preso por ser liberto
Dizia ser fechado
Que trancado jazia
Mas estava sempre aberto...


Para Linda Luz.


sexta-feira, 30 de junho de 2017

Reações Adversas (Vide Bula)

(André de Moraes)


Diz
Como quem cala
Enterra a vala
Derruba a matriz
Cega, de fato, o juiz
Sem paredes faz a sala

Olha
Diverte o oprimido
Divide com a sorte o comprimido
Com suor a toalha se molha
No doce a língua enrola
Mais cervejas para o ouvido

Cheira
Sente o vestígio da presença
Disparada por ser intensa
Deixa sempre à beira
Fora a cor, é poeira
Que vai bem na venta
Sem desculpas nem licença
Pois quando suja é com estrela

Inala
Corrói-te a fumaça
Faz inveja pra traça
Faz do pulmão uma senzala
Da célula negra que rala
Quem disse que o prazer era de graça?
Que fugia da questão da raça?
Deita na rede da sala
Dá outro trago e embala
O respirar ainda te abraça

Deixa como está
Seguro
Embora não tão maduro
Mas afeito a suportar
O mesmo corpo quer amar
Alimentar-se do escuro
Dançar por qualquer barulho
Fazer de qualquer buraco seu lar
Até o próximo viajar
Para que não esqueça o futuro
Pois qualquer muro
A vida represada há de derrubar
Para te lembrar de navegar
Com o tempo prematuro...



sexta-feira, 23 de junho de 2017

Quando a Ciência Precisa de Fé


Esses dias, durante um levantamento bibliográfico, não facilmente encontrei um livro derivado das pesquisas do Projeto Manejo dos Recursos Naturais da Várzea – PRO-VÁRZEA, outrora facilmente disponível para baixar no antigo site do IBAMA. Isso me foi um indicador do declínio da pesquisa, em especial em questões ambientais, na Amazônia nos últimos anos.

Ingressei na UFAM em 2005, ano de publicação do livro que eu buscava. Até 2008, ano de conclusão do curso, comecei a compreender melhor a pesquisa científica e me identificar com aquilo. Segui. Projetos, atividades de campo, artigos, grupos de pesquisa, trabalhos técnicos, etc. Depois mestrado e trabalho tanto na Gestão em CT&I quanto na área ambiental. “Doutorado agora não, vou ter outras experiências”.

Depois, de repente (mas sem muita surpresa) a desastrosa vitória de José Melo nas eleições para Governador do Amazonas simplesmente acaba com mais de uma década de trabalho na construção e consolidação dos sistemas de CT&I e de Meio Ambiente no Estado (expondo também suas fragilidades). Depois, um golpe de Estado em nível federal termina de fuder tudo.

Sei que ficou ruim pra todo mundo que não está no esquema. Mas falando como quem vinha trabalhando nas áreas de CT&I e Ambiental (que não representam prioridades nas ações governamentais), as coisas ficaram críticas. Não há perspectiva nenhuma. E pior é o incalculável desperdício de recursos.

Exemplifico. Participei de um projeto para implementação de Unidades de Conservação Estaduais no Amazonas com um orçamento de milhões de reais cujos resultados hoje não são aproveitados, por conta das diretrizes políticas do Estado. Em 10 anos, muitxs formaram-se em nível de mestrado e doutorado no Amazonas, com bolsas da CAPES, CNPq e FAPEAM, e agora estão sem perspectiva nenhuma.

Daí, em várias conversas com colegas de ofício acadêmico, eu sempre cito que há 5 ou 10 anos atrás, com a formação que temos hoje, estaríamos tranquilamente trabalhando, principalmente no governo e terceiro setor. Ou seja, uma das conclusões é que eu e mais uma galera fomos formados para atuar em algo que simplesmente não existe mais.

Isso não é apenas uma discussão sobre empregabilidade. Mas sim, sobre como se pode desperdiçar o potencial de uma geração que se capacitou e está preparada para contribuir com a melhoria da vida como um todo. Como se distancia toda uma nova geração dessas áreas tão importante por não haver nenhuma perspectiva. Como se consegue inventar um tênue limiar entre resultados extremamente positivos de um programa governamental e uma fragilidade que pode desconstruí-lo da noite pro dia.

Não faltariam dados para comprovar os avanços nas áreas em discussão nos últimos 15 anos, ao mesmo tempo em que não faltam provas para atestar uma corrupção desenfreada no mesmo período. Adivinhem quem permanece e quem é desconstruído? A questão de fundo é de cultura política.

O prejuízo é muito grande. Não sei quando teremos um cenário semelhante ao de 2005, momento no qual se publicavam estudos bons e inéditos sobre a Amazônia feitos por cientistas brasileiros e da região e se ampliava o acesso ao ensino superior de forma a aumentar a presença de jovens oriundos de minorias (preto/indígena, pobre, nortista, etc.), como eu.

Por não me restar outra condição senão a de resistência, estarei com mais uma galera aí na luta para que não demore. Mas, no fim, não é uma questão de tempo cronológico. Nossa vontade é inversamente proporcional à "vontade política". Nossas mãos e corações ainda são poucos e todos os dias temos “baixas”, com colegas voltando para os seus/suas e/ou buscando qualquer coisa para trabalhar e sobreviver.

E, por a ciência não ser nenhuma última tábua salvação, como acredita-se, espero que xs colegas se encontrem em ofícios que lhes dê prazer, satisfação, realização e uma grana. Pensar que alguém que fez doutorado não pode ser jardineiro ou bartender é o mesmo que dizer que as pessoas que ocupam ofícios como esse podem até gostar de ciência, de pensar, refletir sobre a realidade, mas não tem direito a fazer um doutorado por que isso está restrito a quem se almeja cientista. Ou seja, não universaliza a proposta acadêmica.

Para quem insistir nessa de ciência, resta-nos assumir a contradição de lutar baseados na crença de que vai dar certo. Sim, tenhamos fé, cientistas! Isso por que se nos apoiarmos no próprio método científico para fazer uma análise dos dados e da conjuntura para as áreas de CT&I e Ambiental a médio e longo prazo no Brasil e Amazonas, os resultados certamente indicariam que não perdêssemos tempo investindo nisso, para fins de trabalho.

Como minha relação com a ciência não tem se restringe à dimensão estritamente laboral, insistirei mesmo me descobrindo em qualquer outro ofício que pouco dependa dela. Com todas as críticas possíveis, ela já ajudou muito a "sair das trevas mais sombrias" e apenas tentar desconstruí-la é criar um vácuo perigoso em um momento quando o "espírito das luzes*" mostra seus limites.

Não desejo voltar
Aos tempos de outrora
Mas simplesmente que o tempo de agora
Não me faça abandonar os meus desejos
Que, como certos beijos,
Compensam a demora...

André de Moraes
Manaus, pico da cheia de 2017.


*em alusão ao livro homônimo de Tzvetan Todorov