terça-feira, 23 de dezembro de 2014

O Feliz Entardecer da Lembrança

(André de Moraes)


Poderia ter sido somente mais uma tarde. Mas acabara sendo um anoitecer desses raros, quando o sol se põe triste por que não mais poderia ver nossos sorrisos. A companhia, o cavaquinho e o violão e aqueles corações. Tudo o que se precisa para não deixar o tempo passar em vão. Antes ornado com a felicidade de quem ama e se perde no tempo e no espaço ao fechar os olhos.

Queria descrever o dia que se foi
E antes de notar sua feliz saída
Já tornava aquelas vidas anoitecidas
Para que o sonho fosse ali e a dois
Cúmplices da impossibilidade do depois
Com a sempre iminente partida...

Perguntava apenas por que não poderia o tempo estar ao nosso lado. Em se demorar naqueles segundos que não pareciam ser suficientes para descrevermos nossas tantas intersecções. E ali eu lembrava o porquê das primeiras paixões... A música dava sentido a tudo o que não poderia falar de outra forma senão cantando.

Dali partira feliz e pleno
Como se a viagem se ousasse completa
E o abraço de partida fosse o mesmo da chegada
E refletisse toda essa vontade calada
De tudo se tornar um perigo sem alerta
Onde a canção a deixaria nua e coberta
No nosso lento rio ou mesmo na veloz estrada...

Custara tão pouco de mim que acabei agradecendo sem saber bem a quem ou a o quê. Entendi que não precisamos ter explicação para tudo o que nos acontece, pois certas coisas não precisam ser explicadas. Bastam-nos que nos aconteçam. Basta que nos mostrem que o chão pode ser tão alto quanto a montanha e aquilo tudo tão verdadeiro quando a vontade de que um sambista tem de explicar a saudade.

Brincando de adiar o fim
Olhava o céu que parecia mais aberto
Mas à lembrança de que o longe estava mais perto
Antes de no dia, anoitecia em mim
Como anúncio de que seria assim
Mesmo eu insistindo que isso não era certo...

Entre a casa, plantas e nós mesmos, o céu era o único que parecia imune ao tempo e, por um momento, quis me dissolver nele para roubar-lhe essa virtude. Mas daí pensei...

Todas as cores que ainda temos que ver
Todas as músicas que ainda temos que ouvir
Todas as poesias de parede que temos ainda que escrever
Todo o amor que ainda temos que sentir
Todos os sabores que ainda temos de provar
Todas as pessoas que ainda temos que abraçar
Todos os lugares aos quais ainda devemos pertencer
Todas as portas pelas quais ainda temos que entrar
Todas as mãos que ainda temos que apertar
Todos os corações que ainda temos que aquecer
Todas as bebidas que ainda têm que nos embriagar
Tudo aquilo que ainda dará mais sentido para nosso nascer...

O tempo deveria passar. Mesmo aquele momento quando nos perdemos um no outro e a última coisa que queremos é nos encontrar para não acabar a brincadeira.

Como quem faz uma poesia
Temperávamos o tempo
E apenas depois me visitara o pensamento
Dos sabores e inebrios que aquilo continha
E, todavia, entendendo por que partia
Não me furtei ao leve lamento...

Sim, ele deve passar. Mas sua passagem deve ser como aquele trecho do livro que nos faz interromper a leitura e olhar para o horizonte. Como a música nos parece infinita com aquela vontade que nos dá de cantá-la, e cantá-la, e cantá-la... “Mi despedacito de río, hastá donde bajarás?”

Mas o tardio sorriso havia desabrochado
Talvez ao seu tempo, sem pressa
Como as muitas vidas que um rio atravessa
E, mesmo na serenidade, não se exime do brado
Corri para que meu coração estivesse sempre ao lado
Das palavras que a entreguei como promessa
De nunca mais se acabar aquela conversa
E deixar seu colo de mim sempre ornado...

Num depois totalmente dependente do antes, apenas conclui que, naquele momento, pareceu-me que havia descoberto o lugar até onde meu pedacinho de rio havia de ir... E ali não mais chorei. O menino havia sorrido junto conosco...




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