Lembro-me que, em meados da segunda metade dos anos 1990, havia em Manaus a campanha "Eu Quero a Nota" promovida pela SEFAZ. A intenção era incentivar os consumidores a exigir a nota fiscal visando diminuir a sonegação. Como contrapartida, qualquer pessoa que reunisse R$ 150,00 em notas poderia trocá-las por um cupom que incluía um “raspadinha”, com a qual era possível ganhar prêmios diversos, e um “vale-show”, que poderia ser utilizado como ingresso para shows, teatros, cinemas, jogos de futebol, entre outros eventos. Este último foi amplamente utilizado. Por vezes, ficávamos mais de três horas na fila do Cine Chaplin para assistir um filme. A espera passava a ser parte da diversão com as interações que ali ocorriam: pessoas se conheciam, paqueras, situações engraçadas. Aquele parece ter sido o último suspiro dos cinemas no centro de Manaus. Depois disso, ir ao cinema passou a ser quase sinônimo de ir ao templo do consumo.
A decadência dos cinemas no centro e sua absorção pelos shoppings é um indicador da depreciação da área central nas cidades e das novas dinâmicas de consumo concentrado. Num shopping não se vai somente ao cinema. Alí é possível comer, comprar uma variedade de coisas e mesmo ir ao teatro, show ou uma festa. Não somente em Manaus, como também em várias cidades pelo Brasil, os prédios no centro onde funcionavam as salas ganham novas funcionalidades (em Manaus o antigo Cine Chaplin virou o Casablanca Pub) ou se tornam cinemas pornôs (como o caso do antigo Cine Renato Aragão, na Av. 10 de julho, também em Manaus) Estes últimos, por vezes, são apropriados como microterritorialidades para prostitutas, travestis entre outras “lumpem-minorias” como forma de garantir seu trabalho longe da discriminação e violência conforme bem descreve o Antropólogo Alexandre Vale no seu livro No escurinho do Cinema: cenas de um público implícito ilustrando o caso de Fortaleza/CE.
Com o discurso asséptico de "revitalização da área central", que na verdade esconde uma estratégia para a reprodução do capital, é apregoado o resgate dessa simbólica porção espacial da cidade como uma forma de diminuir a marginalidade, ofertar opções de lazer para a população e promover o turismo. O poder público tem interesse nisso e vários são os motivos. Desde a higienização e regulamentação do espaço até uma facilitação para abertura de novos empreendimentos dos mais variados compõem as intenções. Existem programas do governo federal para “revitalização de áreas centrais”e mesmo específicos para reativação de cinemas via Ministério da Cultura. O planejamento urbano, ditado pelos interesses imobiliários, principalmente, visualiza nesse movimento oportunidades de novos mercados e, quase que somente isso, justifica a atenção prestada à área central.
O uso do espaço público deve, assim, estar sob a custódia do Estado que não reconhece formas alternativas de apropriação. Não tardará surgir em Manaus uma proposta de revitalização de um desses cinemas, talvez como forma de não ficar de fora desse movimento sob a alcunha do fomento à cultura, ao turismo e desenvolvimento urbano. Assim a paisagem da cidade vai se desenhando como num filme, onde ocorre a supressão/compressão de tempos e espaços. No tempo, a paisagem pretérita é revisitada e recriada no presente como se nada houvesse ocorrido entre as reformas de uma praça (por exemplo) e sua “revitalização”. Ignoram-se os aconteceres desse intervalo que marcaram pessoas que ali criaram seus lugares e não se identificarão uma paisagem extemporânea à sua vivência. No tocante ao espaço, tais quais alguns filmes que ocorrem em pouco cenários, privilegia-se alguns poucos pontos na área central para serem “luminosos” enquanto todos os demais continuam “opacos”. Induz-se, desse modo, que as tramas sociais que ocorrem na luminosidade sejam reconhecidamente morais e legais, enquanto tudo aquilo que se desdobra na opacidade está passível de reprovação, repressão e regulamentação. Segue-se, assim, comprimindo tempos, suprimindo espaços e ignorando vivências.
Manaus não é mesma. Na verdade, não existe o “mesma”. São tantas Manaus quanto variados forem seus olhares. Entretanto, se deixa predominar aqueles que, forçosamente, tentam manter a configuração do elenco entre os que a protagonizam (Estado e Capital), fazem participações especiais (turistas) e dos meros coadjuvantes (população, em sua maioria). Os cinemas estão totalmente sujeitos ao movimento da reprodução do espaço urbano marcado por conflitos. Seu retorno ao centro pode ser apenas um preciosismo nostálgico para o qual o Estado não tem o menor problema de participar ou via uma movimentação artístico-popular alternativa de revindicação do direito à cidade. Comercialmente, o centro perdeu para o o shopping e o cinema (comercial) é um dos indicadores disso. No entanto, essa pode ser a conjuntura propícia para que este seja apropriado pela população que poderá garantir outras lógicas para seu uso que não somente as do capital.
O papel (mesmo que não reciclado) do Estado nesse contexto está comprovado. Não sei se a SEFAZ alcançou seu objetivo fim de diminuir a inadimplência, mas a campanha garantiu acesso por parte da população à uma variedade e quantidade de eventos que dificilmente se repetirá. Essa iniciativa segurou os cinemas no centro por mais tempo com impactos significativos na dinâmica de lazer da cidade. Acredito que não precisamos de uma campanha semelhante para ressignificar o espaço central de Manaus e nem para reabrir cinemas. A cidade está cada vez mais distante do Centro. Talvez o impacto da abertura de salas de cinema nas zonas e/ou bairros da cidade seja bem maior e mais adequada considerando o objetivo de universalizar o acesso. Ao centro restaria ser a paisagem urbana síntese de todos: excluídos, incluídos e recluídos. O lugar de revisitação da geografia e história da cidade e de seus habitantes a serem exibidas em curta, média ou longa-metragem dependendo do quanto ainda restar das paisagens que dizem por si aquilo que não sabemos dizer por nós.
Nenhum comentário:
Postar um comentário