quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Cinzas Soltas no Vento


Estamos pelos idos da metade do século XX, os leprosos e os loucos são confinados. Existe uma política coerciva de controle desses indivíduos, sendo punidos aqueles que não notificassem à Profilaxia da Lepra os casos. Em Manaus, o “Hospital-colônia” Antônio Aleixo, se situa cerca de 14 km do centro urbano da cidade de Manaus, lugar perfeito para a reclusão desses grupos patológicos, distante e escondido, não apresentava perigo de contaminação à sociedade...

CINZAS SOLTAS NO VENTO
(Juliana A. Alves)

O tempo passa como de costume e a espera consome. De repente, um aglomerado de pessoas se amontoa e se apressam entre a multidão no terminal de ônibus. Finalmente, a espera tem fim. O ônibus meio que, como sem destino, carrega rostos calejados pela tristeza com aquele olhar distante, tão distante quanto o caminho que se almeja chegar. O caminho é longo e tão longo quanto a infinidade de transformações que apresenta a paisagem. Em poucos minutos da saída do bairro Cachoeirinha a paisagem se metamorfoseia. Adentramos no Distrito Industrial. O ônibus antes densamente ocupado, como um pássaro, passa a distribuir suas sementes pela terra. De lá, em diante, a paisagem muda, abruptamente, sai-se da cidade sem saber que dela não se saiu. A cidade persiste e a floresta resiste. Aos poucos, as fábricas vão esvaecendo e dá-se lugar aos sítios e ao Parque Sauim de Castanheira. Por um longo trajeto a paisagem é a mesma. Poucas casas são avistadas no trajeto. A única lembrança da cidade é o asfalto e a fiação elétrica, a paisagem por vezes é engolida por paredões rochosos o que remete a memória da estrada. Na estrada a esperança é de se chegar n’algum lugar desse infinito da Amazônia, cansa ao expectador, esse viajante apurado, a floresta e a quantidade infindável de fazendas, mas ao fim, sempre, se chega à cidade. Nesse caso, não se espera chegar à cidade, pois dela ainda nem saímos, espera-se chegar num pedacinho dela esquecido. Um longo caminho ainda tem-se a percorrer. Quando não se espera mais nada desse lugar que abriga nenhum lugar, avista-se uma escola, um grande hospital...Tem fim o trajeto e dá-se início a nossa jornada. Vamos...
De início, as diferenças deste bairro para os demais se acentuam. Seja pela sua distância em relação ao centro de Manaus, que dista cerca de 14 km seja, pela forma como se chega ao bairro. Chega-se ao bairro de duas maneiras: a primeira pela Avenida Cosme Ferreira que liga o bairro ao centro da cidade e a segunda forma por via fluvial, pelo rio Amazonas que banha a porção sudeste do bairro.
O pesquisador sempre é um estranho dentro da cidade. Ainda que não se sinta como tal, as pessoas o olham como um estranho. Tentamos não chamar atenção. Fixando atentamente o olhar na paisagem sem perder seus expressivos movimentos. Mesmo depois de quase 32 anos que se constituiu como bairro a Colônia Antônio Aleixo parece ter parado no tempo. Poucos carros circulam no bairro. A maior parte do transporte utilizado são motocicletas. Após uma volta pela montanha russa, pelos sinuosos caminhos asfaltados do bairro, decide-se avistar a parte banhada pelo rio Amazonas. Perdidos, sem saber que rumo tomar e tentando através da comunicação se aproximar do objeto. Perguntei: “Como chego ao rio?”. As pessoas sem entenderem o que desejávamos fazer, diziam: “É longe! É melhor ir de mototáxi tem que ir pro 11 de maio!”. Insisti: “Mas, quero ir a pé”. Subimos e descemos ladeiras. Muitas foram as paradas para se perguntar como chegar ao rio. Ainda perdidos. Muitas paradas se seguem. Pedimos informação a uma dupla de pedreiros que trabalham na reforma de uma igrejinha. Ao olhar para as mãos de um deles meu corpo estremece – vejo a minha frente “mãos de garra”, uma triste lembrança para aquele que carregou dentro de si o bacilo de Hansen. Conseguimos a informação almejada e seguimos caminho, despedindo-se daqueles olhos tristes. Após subidas e descidas das ladeiras da vida. Avista-se o rio. Contempla-se a paisagem. O escondido e indesejado revela a sua maravilha – banhado pelo rio Amazonas. Distraídos com a paisagem e com a cabeça fervilhando ouço alguém me perguntar, vindo semelhante o murmúrio da floresta: “Quer atravessar?”. Eu pergunto: “Quanto é?”. A voz que se materializa e aproxima. E responde: “1 real”. Vamos...
A travessia é curta, em menos de 1 minuto chega-se ao outro lado. Entre flutuantes, crianças brincando a margem do rio avistam-se os catraieiros e destes se distancia. O rio neste momento está cheio, devora a terra – tem gula por engolir e fertilizar as suas margens. Chega-se por fim ao bairro Puraquequara.

A sociedade criou uma imagem desses espaços e a difundiu. A imagem de um verdadeiro cemitério de almas pecaminosas, restando a elas apenas a espera pela morte. A localização desses espaços deveria ser o mais distante possível do campo de visão da sociedade. Eles ainda se tornariam os grandes símbolos do segregacionismo. Fechar-se-iam como ostras nos mares do estigma. Muros levantados e portões fechados para por no esquecimento o que a sociedade de maneira mais cruel construiu.

"Existir, seja como for. Resistir, seja como Flor".
(Chaveiro, 2005)

Fonte da foto: alexandrepitante.blogspot.com

5 comentários:

  1. como pode um texto tão bonito
    ser tão triste?

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  2. a tristeza também é bonita, basta atentar para ela.E dela faço poesia.
    Afinal, "A tristeza "parece" poesia" (O teatro Mágico).

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  3. Seu texto é mesmo trite, mas a beleza dele encontra-se nas suas palavras escritas carregadas de sentimentos...

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  4. Cinza é a cor do olhar de quem ainda mantêm longe aquilo que nunca era para deixar de estar perto.
    Belo texto.
    Abraços

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  5. Versão aperfeiçoada:
    "Cinza é o olhar de quem ainda mantêm longe aqueles que nunca deveriam ter deixado de estar perto"
    (Andre de Moraes)
    Mais abraços de solidariedade aos irmãos segregados.

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