segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Música e Leituras Ambientais na Amazônia


André de Moraes
Geógrafo e músico amador


A inserção das artes no contexto interdisciplinar tem sido discutida por vários autores. No âmbito da questão ambiental, interdisciplinar em sua essência epistemológica, a discussões são direcionadas para a educação e sensibilização ambiental e divulgação científica. A despretensiosa música de vários compositores chamados ‘regionais’ que retrata desde a natureza e o cotidiano de forma integrada possui uma leitura ambiental ainda pouco explorada.

O historiador Todorov, em seu belíssimo livro A Literatura em Perigo observa que a leitura de um romance pode ser mais reveladora que um estudo sociológico, e se pode acrescentar que o mesmo se aplica às artes em geral, inclusive a música. Nesse sentido, apresentar a música como afirmação da identidade dos saberes amazônicos sugere um aprofundamento da forma e no conteúdo das canções cuja literatura aborda ricas relações socioambientais.

Interpretações e leituras sobre a Amazônia no olhar artístico representam possibilidades que podem ser lidos com a sistematização metodológica da ciência e possuem a liberdade interpretativa das artes adentrando o campo da complexidade baseada nas teias de relações que formam sistemas complexos. A abordagem sistêmica como método de apreensão das letras de músicas que versam sobre a Amazônia surge quando se percebem que entre os diversos elementos, sejam eles coisas ou objetos se conectam e transitam entre sistemas naturais e sociais complexificando as relações e oferecendo novas perspectivas interpretativas da realidade.

Os atores sociais como o caboclo, que aparece como uma espécie de representação do povo numa versão regionalizada da história nacional, são descritos em suas diversas tramas socioambientais que se misturam tempo social e tempo ecológico de forma livre, mas nunca fugindo ao cotidiano que é povoado de natureza.

Pelas análises perpassam uma necessidade de aprofundamento empírico e teórico para desvendar do tema proposto, entretanto, resultados preliminares corroboram para uma leitura da representação ambiental na musicalidade amazônica. A personificação da natureza e naturalização de alguns hábitos representam formas outras de se debruçar sobre a realidade e podem exercer funções na complexa teia de relações que envolvem ecologia e sociologia. Para além de uma interpretação literal, as subjetividades apresentam função de possibilitar as conexões entre elementos, tal qual mitos presente em comunidades indígenas.

A leitura ambiental depende de uma visão holística cara a ciência moderna mas que parece habitar concepções artísticas de onde se pode extrair possibilidade empíricas e teóricas.

Quando você voltar...


(André de Moraes, sem muito pensar na estética, apenas sentimento)













Quando vc voltar eu quero que me conte de tudo,
De todas as saudades,
De todas as vontades,
De todas as confições no silencio de uma noite fria,
De todas as palavras potencialmente ditas
De todos os frios sem meus abraços,
De todos os pensamentos involutarios,
De todas as caras bobas e perfeitas.

Conte-me de suas belezas,
Do quanto tens,
Do quanto precisas de mim,
De todos os sons que tocam nossa música,
Tudo meu amor,
Tudo o que me fizer ser um pouco mais vc...
Tudo o que me levar para esses labios,
Seus labios,
Tudo o que me fizer esperar pelo abraço,
O beijo sentido,
O calor passado,
A mão estendida que me traz vida,
Seu olhar que me deixa assim, meio querendo, meio satisfeito,
Tudo.

Quero saber das boas notícias,
Dos lugares que só uma parte de mim conhece: você!
Das bebidas que tomarei quando te beijar,
E dos ares de uma confissão plena de amor.

Quero saber da natureza,
Do que você quer que eu também veja,
Do vento que sentiste,
Quero saber das formas,
Das cidades,
Das idades que conseguiste por aí,
Dos campos que andaste,
E das colunas que escoraste o cansaso.

Quero que me digas o quanto agora és mais você.
O quanto cresceu dentro de sim mesma ao ponto de se derramar para mim.
E de toda essa alegria feita de seda,
Me envolva na sua perdição,
E me deixe ir um pouco além,
E me deixe te perseguir,
E te derrubar no chão,
E te mostrar de quantos muitos momentos se constroi a felicidade.

Quero que me deixes ouvir,
Apenas ouvir e sonhar,
E saber que enquanto espero,
Você vem.

Quero isso
Só isso...



Fonte da figura: http://www.fotolog.com.br/hellen_mobscene/22284921.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

PORTA DE COLETIVO CAI ENQUANTO PASSAGEIROS DESCIAM

“Por que a porta e não o Pré-feito?”
André de Moraes
Manaus, 23 de novembro de 2011.

Hoje, no meu deslocamento diário de 002 (interbairros), tudo ia como sempre. Demora, engarrafamentos e o desconforto de uma condução lotada. Em certo momento eu ouvia notícias pelo rádio enquanto o ônibus para no ponto próximo ao campo do “buracão” no Parque Dez de Novembro. De repente, ouço um barulho e percebo comentários com risos e ironias. A porta do coletivo havia caído quando o ônibus parou.

O motorista é alertado por passageiros e recolheu a porta acomodando-a no meio do coletivo que, após essa intervenção, seguiu seu trajeto normalmente.  “Nem pra ter caído no chifre do Negão!” exclamou uma passageira. Os trabalhadores, estudantes e demais usuários demonstravam expressões que mesclavam o trágico e o cômico, mas seguiam para seus compromissos comentando a periculosidade da situação. “seriam esses os novos ônibus que justificaram o aumento da passagem?”. Tratei de registrar a situação e torna-la pública esse episódio para não estar sujeita à pauta da mídia.


Realmente a gestão municipal não leva a sério os usuários do transporte coletivo em Manaus e não faz o mínimo esforço de promover uma discussão qualitativa. Estamos sujeitos a um prefeito notadamente perdido. O modelo político (centralizado, populista e baseado numa democracia incompleta que se esgota representatividade) que a atual gestão insiste em adotar não dá mais certo como outrora. A maior possibilidade de acesso à informação encurtou mais ainda as pernas da mentira. Isso, combinado ao eco cada vez maior das vozes que reclamam o interesse coletivo, desenha um cenário favorável a uma proposta política com maior participação e controle social resultando na indução do processo político no sentido dos interesses da coletividade.

O que podemos e devemos fazer é explorar a crítica latente por trás de episódios como este e divulgá-las fazendo com que, ao invés de portas de coletivos, vá abaixo de uma vez o “pré-feito” (nos moldes da sua visão política ultrapassada) Amazonino Mendes e toda a sua promiscuidade política, pois acredito que, se ainda havia alguma máscara, essa já caiu há muito tempo.



Fotos: André de Moraes.




sábado, 15 de outubro de 2011

No final, o melhor é chamá-lo de o bairro da "Liberdade"

Um bairro que guarda as marcas de uma patologia é, sem dúvida, um espaço que ainda guarda estigmas, que carece de certos equipamentos por causa da precipitação e do descaso dos órgãos administrativos. Por outro lado, é um espaço de reprodução da vida onde desabrocha os laços de solidariedade entre os moradores, onde ainda existem as rodinhas e aquele “clima” de que todos se conhecem, principalmente, por aqueles que são moradores desde a época do Hospital-Colônia. É um bairro de misturas. Que se encontram e não se aproximam, que se distanciam mas, não se desencontram. É um hibrido de tudo o que há e não há nos outros bairros da cidade de Manaus. Ele tem suas particularidades, mas também, tem suas singularidades com os demais bairros, seja na violência urbana, na ausência de segurança pública, na precariedade na prestação dos serviços públicos etc.

O único fator desfavorável é a distância geográfica do bairro para o Centro da cidade e a precariedade do sistema de transporte público que dificulta a acessibilidade e a ligação entre os bairros. Entretanto, este problema não é exclusivo do bairro Colônia Antônio Aleixo. Por outro lado a economia e o desenvolvimento do bairro independem da cidade de Manaus. Este cenário corroborou para que as lideranças locais e moradores do bairro estivessem presentes durante a votação do Projeto de Lei n° 136/2010 de autoria do ex-deputado e atual Secretario de Produção Rural do Amazonas (Sepror) que previa a criação de 28 novos municípios no Estado do Amazonas, durante a votação na Assembleia Legislativa do Estado (ALE), que ocorreu em novembro de 2010, lideranças do bairro Colônia Antônio Aleixo solicitaram a inclusão do bairro na lista dos novos municípios. Na época o então deputado sustentou que o referido pedido não se adequava a proposta do projeto. Recentemente, a temática volta a ganhar força e ser pauta de discussão política. A Comissão de Assuntos Municipais (Comam), da Assembléia Legislativa do Estado, se reuniu no dia 14 de setembro de 2011, que recebeu visitas dos representantes da comissão pró-emancipação da Comunidade de Bom Jesus, do município de Autazes e do bairro Colônia Antônio Aleixo de Manaus. Dentre as argumentações das lideranças do bairro para a sua emancipação está a de que o bairro já possui estrutura de município e com toda a infraestrutura necessária para funcionar em termos administrativos. As lideranças argumentam o imperativo da emancipação do bairro devido ao intenso processo de urbanização pela qual vem passando a cidade de Manaus. A argumentação é de que este crescimento tem relegado a Colônia e os bairros adjacentes ao esquecimento. A idéia é que a Colônia se transforme em município da Região Metropolitana de Manaus (RMM). Este quadro descaracteriza o espaço de terminologias como bairro dos esquecidos, espaço (des)integrado etc. Talvez, seja o bairro dos que não querem ser esquecidos. Mas, no final o melhor é chamá-lo de o Bairro da Liberdade.

O bairro possui pleno desenvolvimento, porém este não condiz e não está articulado a sua estrutura maior a cidade de Manaus. O carro-chefe desse argumento se efetivou recentemente quando se baseando de princípios da economia solidária a Associação de Moradores do bairro criou uma nova moeda. A proposta foi implantada no dia 01 de outubro de 2011 a moeda social denominada “Liberdade” foi cunhada pela instituição social Banco Comunitário Conquista. A criação da moeda tem por meta corroborar com o desenvolvimento socioeconômico do bairro e fomentar o comércio local, que se apresenta prejudicado pela distância geográfica do Centro de Manaus[1].


Juliana A. Alves.


[1] Cinthia Guimarães. “Nova moeda” vai circular na zona Leste de Manaus. Jornal A crítica.

Foto: Barco Adolph Lutz caçava os doentes pelos rios, furos e paranás do Estado do Amazonas entre 1940-1978. Fonte: Acervo Emília Pereira, Coordenadora do Programa de Hanseníase da FUAM.


sexta-feira, 14 de outubro de 2011

"Pensão Lula" para os Portadores de Hanseníase


É partindo do que artesanalmente construímos como a Geografia dos sentimentos, que trata do sentir. Sentir do pesquisador, das pessoas e, principalmente, dos doentes que iniciamos essas linhas...

Essa era a vida da gente. A gente tinha os filhos da gente [...] e a gente nem podia triscar. E eu aqui com a minha mulher tivemos 2 filhos saía da maternidade na mão do médico, passava assim num carrinho. - Tá aqui seu filho – e só podia olhar assim. E daqui pro Educandário […] Meus filhos foram pro Gustavo Capanema […] (R.T.C., 67 anos, morador da Colônia Antônio Aleixo, Manaus).


Das páginas do Dossiê – A história dos filhos órfãos de pais vivos no Brasil, realizado pelo Morhan, a fotografia acima apresenta cinco cestos com filhos de portadores de hanseníase, na década de 1940, que foram separados dos pais e encaminhados a creches e preventórios. Tal forma cruel de separação dos filhos de seus pais não aconteceu somente no Amazonas, mas em todo o país. Foi instituída em 13 de janeiro de 1949, Lei nº 610 – todos os portadores de hanseníase devem ser separados do convívio dos familiares e seus filhos devem ser levados para Preventórios/Educandários. Em 15 de outubro de 1968, esta lei foi revogada pela Lei nº 5.511.

Durante as décadas de 1930 e 1970 vários portadores de hanseníase foram isolados em leprosários e separados do convívio familiar. A partir da década de 1950 os filhos de portadores da doença deveriam ser separados dos seus pais e enviados a educandários e creches destinadas aos cuidados destes. Recentemente, o Brasil passa a ser o segundo país, o primeiro foi o Japão, a tomar medidas a adotar a indenização aos portadores de hanseníase. No caso do Brasil o processo foi conquistado a partir de ações entre os poderes Legislativo e Executivo. No Japão, as indenizações foram resultado de uma ação judicial. A pensão especial têm direito todas as pessoas que tiveram hanseníase e foram submetidas ao isolamento e internação compulsórios até 1986.

Se a indenização para os filhos separados de pais portadores de hanseníase for concedida, o país passa a ser o primeiro a adotar essa postura. De acordo com Rogério Sottili, ex-secretário-executivo da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, a instituição da pensão é mais do que uma compensação econômica, é uma forma de “desculpas públicas”.

Foi por meio da Recomendação do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 8, de 08 de julho de 2010 e considerando que a Comissão de Direitos Humanos da ONU passou a reconhecer os abusos que foram cometidos, em âmbito de Direitos Humanos, com os portadores de hanseníase e com seus familiares, que propõe aos países membros, que se faça jus a políticas afirmativas em razão dessas vulnerabilidades; considerando ao Governo e da Sociedade, o erro da extensão da política segregacionista, por meio da Lei nº 11.520, ponderando que essa política realizou a separação dos filhos. Pois, mesmo após a abolição da política segregacionista nenhuma medida foi tomada e executada para a reintegração dessas pessoas. Diante deste quadro o CNS recomenda ao Governo Federal a indenização e reparação aos danos cometidos aos filhos separados dos pais na época da segregação.

Em Manaus, a instituição responsável pela orientação e encaminhamento da documentação comprobatória é o Centro de Referência em Dermatologia e Doenças Venéreas Fundação Alfredo da Matta. A instituição também é responsável pelo recolhimento dos documentos para a pensão especial (ou pensão Lula, por ter sido instaurada nesse governo) sob a Lei 11.520 de 18 de setembro de 2007. O processo se inicia com os documentos enviados pelo requerente. O retorno é realizado por carta enviada de Brasília solicitando a documentação. Posteriormente, se inicia o processo minucioso de coletas de provas de que o requerente esteve internado compulsoriamente em Hospital-Colônia: consulta a base de dados antiga da Fundação Alfredo da Matta, Consulta ao SINANW[1], Verificação da existência de prontuário na FUAM ou no Hospital Geral Dr. Geraldo da Rocha, Verificação de prontuário microfilmado, Consulta de informações ao comitê formado por ex-moradores da Colônia (distintas épocas) e técnicos da FUAM. Na ausência dessas informações a equipe do Programa de Hanseníase da Fundação Alfredo da Matta recorre a outras fontes: registro fotográfico, oitivas etc.

O Projeto de Lei que prevê a pensão mensal vitalícia aos portadores de hanseníase que foram submetidos ao isolamento compulsório foi elaborado, pelo então senador à época do Acre, Tião Viana (PT/AC). No artigo 1º do Projeto de Lei nº 206, de 2006 assim dispõe: “É assegurado, às pessoas atingidas pela hanseníase e que foram submetidas a isolamento e internação compulsórios, em hospitais-colônia, pensão mensal vitalícia correspondente a setecentos reais, conforme disposto em regulamento.

A Hanseníase é contemplada pela Previdência Social na concessão ao auxílio-doença, assim como outras 15 patologias (Conforme Art. 1º da Portaria Interministerial MPAS/MS nº 2.998, de 23 de agosto de 2001), com a condição que o portador possua a qualidade de assegurado (vínculo empregatício comprovado com carteira profissional ou comprovante de recolhimento – carnês, Guia da Previdência Social – GPS e por meio de inscrição no Ministério do Trabalho). Porém, alguns desses portadores foram acometidos pela doença muito cedo com marcas severas que nem chegaram a trabalhar. Esses portadores de hanseníase que não possuem a qualidade de assegurado podem recorrer ao benefício Amparo Assistencial ao Idoso e ao Deficiente (Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS – nº 8.742, de 07 de dezembro de 1993.

Em Manaus, a manifestação acerca da indenização aos filhos separados de pais portadores de hanseníase teve início com as discussões realizadas no dia 26 de Abril de 2011 na sede da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-AM) durante o Projeto Filhos Separados promovido pelo Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan) que tem ocorrido em todos os estados do país[2].

O Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan) em parceria com o Instituto Nacional de Genética Médica Populacional (Inagemp) lançam programa para que exame genético comprove os laços de parentesco entre os filhos separados de pais portadores de hanseníase. O exame genético será realizado por meio da coleta de amostras de saliva (preservadas em recipiente refrigerado e enviadas para o Hospital de Clínicas de Porto Alegre, onde serão analisadas). “Os resultados servirão de base para o pedido de indenização daqueles que não possuem nenhum documento que comprove que são filhos de ex-pacientes e foram separados dos pais”[3]. Isto, porque em alguns lugares os registros históricos, as listas com os nomes dos pacientes e listas com o nome dos filhos encaminhados à educandários, preventórios etc., foram queimados ou perdidos o que dificulta, recentemente, a comprovação para alguns filhos separados de pais portadores de hanseníase. Cada resultado da amostra de saliva demora cerca de 15 dias para revelar o laço de parentesco. O patrimônio genético é exclusivo para cada indivíduo e pode ser extraído de pequenas amostras biológicas: saliva, unhas, dentes, ossos, sêmen, cabelo, fluídos biológicos e manchas de sangue.


Juliana A. Alves


[1] Tabulação de Dados SINAN Windows – recurso específico destinado aos gestores municipais e estaduais de vigilância epidemiológica.

[2]Cinzas soltas no vento: Isabel foi levada para o hospital aos 6 anos de idade, conta que “[...] corria para abraçar minha mãe e ela se afastava dizendo que não podia, eu chorava pedindo pra que ela me levasse [...]”. Reportagem Hansenianos separados de seus filhos podem ser indenizados por Lívia Anselmo no Portal do Jornal Diário do Amazonas de 23/04/2011.

[3]Genética vai ajudar órfãos da hanseníase. Jornal da Tarde.


quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Índios e Militares na Amazônia Brasileira

Nas Comunidades Indígenas do Rio Uaupés, a semana da pátria, não somente o 7 de setembro, é comemorada com muita festa. Ao longo de todo o mês de setembro se hasteia solenemente a bandeira verde e amarela e se recolhe com muito carinho ao fim do dia. É intrigante ver o enorme patriotismo existente na maioria das aldeias indígenas das fronteiras brasileiras. Intrigante porque se tratam de comunidades de povos que sobreviveram à formação do Estado Brasileiro e que sofreram na carne as piores atrocidades cometidas nesse país. E mais ainda pela forma espantosa, para não falar cruel, com que os militares tratam esses povos, pois são vistos por eles como perigosos a soberania nacional, o que justifica o aumento da danosa presença militar nas aldeias.

Tive a oportunidade de conviver com pessoas de diferentes povos indígenas e de conhecer dezenas de aldeias de Roraima, Amazonas, Pará e Mato Grosso, além de alguns povos da Venezuela. Aqui no Brasil constatei que, os Pelotões Especiais de Fronteira e outras instalações militares existentes, estão instalados dentro das aldeias indígenas e muitas vezes bem longe da linha de fronteira. Mesmo em rios pouco povoados, as bases estão literalmente dentro das aldeias.

Os militares, dezenas ou mesmo centenas de homens jovens, alguns recém saídos da puberdade, são agrupados longe de suas casas e encontram nesses espaços poucas possibilidades de satisfazerem suas necessidades culturais e seus instintos sexuais, somados a sede por viver sem limites a passageira juventude.

Ainda assim os problemas persistem e em muitos casos se agravam. Primeiramente porque vão se criando contradições dentro das comunidades, especialmente por alguma dependência econômica ou social ligada a presença militar. A principal delas se estabelece com as relações entre militares e comerciantes locais. Os comerciantes em geral defendem a presença militar por preverem perdas comerciais com sua retirada, tornando difícil o diagnóstico e solução do problema. E mesmo quando o problema é percebido com clareza pela comunidade e, desejosos de solução tomam partido, ainda devem suportar os sussurros preconceituosos de resíduos históricos, tais como a mentalidade de generais da reserva e de setores reacionários da sociedade em geral. Um exemplo vivo é o Gal. Augusto Heleno, que prega a militarização ou o loteamento privado dos territórios indígenas de fronteira, alegando riscos à soberania nacional.


Parece redundante explicar o resultado desse contato, mas cada dia me surpreende mais a gravidade dos fatos. De cara é possível verificar o agravamento do alcoolismo, do uso de drogas pesadas e a introdução de DST’s, com efeitos nocivos para os dois lados em questão. A gravidez de jovens e meninas sem paternidade assumida e a prostituição são cada dia mais freqüentes nas aldeias e comunidades onde se instalam os quartéis.

No caso específico dos povos do rio Uaupés, de família lingüística Tukano, a coisa é ainda mais grave, pois são povos de cultura patrilinear, ou seja, a identidade étnica é determinada pela identidade paterna. Mesmo que uma pessoa seja criada em comunidade indígena, falante de língua indígena, filha de mulher indígena, criada por um pai adotivo indígena, se o pai biológico não é indígena essa criança nunca será reconhecida como indígena, ainda que não tenha sequer conhecido o pai biológico.

Mais do que isso, há uma silenciosa crise pela falta de mulheres. Isso porque muitas moças se encantam com “os de fora” dificultando a união de casais das comunidades. Ou ainda, pela “adoção” de meninas que se tornam babás ou domésticas e acompanham as famílias dos oficiais transferidos de posto, atraídas por promessas de bons estudos.

Nas comunidades Yanomami, onde as mulheres estão no centro dos principais conflitos, já foram registrados vários problemas graves com os militares por conta de relações sexuais com moças e meninas, principalmente em Maturacá. O Distrito de Maturacá também foi palco de um dos mais impressionantes conflitos entre militares e indígenas, quando os Yanomami, revoltados com a abusiva prisão de um jovem líder em sua própria residência, dominaram o Pelotão Especial de Fronteira inteiro até que os militares libertaram o rapaz. Este fato enfraqueceu as relações com os militares que não são mais bem-vindos nas comunidades.

Em um movimento nem sempre consciente, os militares, para serem mais bem aceitos nas comunidades e pela opinião pública em geral, ofertam eventualmente atendimentos médicos e outros serviços que na verdade são direitos constitucionais dos quais as comunidades estão excluídas. Mesmo assim esses atendimentos não são constantes e muitas vezes os oficiais restringem o acesso ao atendimento por meses.

Ao perceberem os prejuízos, algumas pessoas e comunidades organizam como podem suas resistências, seja se afastando dos pelotões, seja restringindo a circulação de soldados em certos ambientes comunitários.


Maiká Schwade
Casa da Cultura do Urubuí, 28 de setembro de 2011

sexta-feira, 22 de abril de 2011

As “Invasões” Urbanas em Presidente Figueiredo / Amazonas

Convencionou-se chamar de invasões ou favelas as ocupações irregulares que marcam este período moderno de crescimento das cidades no Amazonas e em toda a América Latina. Elas estão ligadas a processos objetivos, como a tentativa da população empobrecida de acessar bens e serviços disponíveis apenas nas cidades; mas está ligada especialmente a processos subjetivos, como a estigmatização dos sujeitos do interior como seres atrasados, supersticiosos e ignorantes e a cidade, por outro lado, como lócus da civilização e do conhecimento.O Município de Presidente Figueiredo é um exemplo de como esse processo vem ocorrendo no Estado do Amazonas. Por isso, é marcado por centenas de famílias vivendo em pequenas casas edificadas em terrenos urbanos ocupados irregularmente. Se considerarmos que as ocupações irregulares são as áreas de maior densidade demográfica da cidade, notaremos o seu importante papel na expansão urbana de Presidente Figueiredo. Essas ocupações, apesar de pequenas, acolhem pelo menos um terço da população.







São áreas que acumulam os mais variados problemas sociais. Além disso, não há praças, calçadas, escolas, áreas de lazer e, muito menos, espaço para edificar uma boa casa. Isso sem falar nos inúmeros problemas ambientais associados.

Muitos falam em uma “Indústria da Invasão”, ligada a quadrilhas organizadas vinculadas a pessoas influentes com interesses eleitorais e econômicos. Porém, mesmo que essas quadrilhas existam, devemos concordar que são fatores secundários, diante da constante demanda por habitações na cidade.

Se observarmos a expansão urbana de Presidente Figueiredo nos primeiros 14 anos após a instalação do município (1982 a 1996), iremos notar que as ocupações irregulares foram praticamente nulas. Isso se deu ao fato de que a oferta pública atendeu a maior parte da demanda por terra na cidade.

No período seguinte, entre 1996 e início de 2006, nenhum loteamento público foi liberado. As conseqüências dessa ausência foram desastrosas. Foi justamente nesse período que surgiram as ocupações das ladeiras e encostas íngremes e das nascentes e margens de igarapés que cortam a cidade.

A Prefeitura Municipal somente liberou novos terrenos urbanos, em 2006. Sabemos dos problemas ocorridos na distribuição desses lotes, ou seja, muita gente que vivia em situação de risco ou de aluguel não recebeu lote da Prefeitura e outros, menos necessitados, receberam lotes irregularmente (empresários e funcionários públicos). Mesmo assim, o loteamento do Galo da Serra já completou cinco anos, e nenhuma grande ocupação irregular ocorreu desde então.

Percebe-se que o loteamento de terras públicas é uma eficiente ferramenta de controle das ocupações irregulares (ainda que não atinja as causas da urbanização da população). No entanto, a Prefeitura Municipal estrategicamente deixa que o problema se generalize para depois dar uma resposta paliativa. Portanto, em um ou dois anos, presenciaremos novamente ocupações urbanas nos igarapés e a criminalização de pessoas que, marginalizadas pela política social da Prefeitura Municipal, acabarão se sujeitando a uma vida de riscos. A Prefeitura alimenta o clientelismo, que obriga os sujeitos sujeitados a elegerem os sujeitos sujeitantes.



Presidente Figueiredo (Amazonas), 18 de abril de 2011.

Maiká Schwade

As fotos são de autoria de Markus Shimizu e Maiká Schwade (2006) e compõem o acervo da Casa da Cultura do Urubuí.