Nas Comunidades Indígenas do Rio Uaupés, a semana da pátria, não somente o 7 de setembro, é comemorada com muita festa. Ao longo de todo o mês de setembro se hasteia solenemente a bandeira verde e amarela e se recolhe com muito carinho ao fim do dia. É intrigante ver o enorme patriotismo existente na maioria das aldeias indígenas das fronteiras brasileiras. Intrigante porque se tratam de comunidades de povos que sobreviveram à formação do Estado Brasileiro e que sofreram na carne as piores atrocidades cometidas nesse país. E mais ainda pela forma espantosa, para não falar cruel, com que os militares tratam esses povos, pois são vistos por eles como perigosos a soberania nacional, o que justifica o aumento da danosa presença militar nas aldeias.
Tive a oportunidade de conviver com pessoas de diferentes povos indígenas e de conhecer dezenas de aldeias de Roraima, Amazonas, Pará e Mato Grosso, além de alguns povos da Venezuela. Aqui no Brasil constatei que, os Pelotões Especiais de Fronteira e outras instalações militares existentes, estão instalados dentro das aldeias indígenas e muitas vezes bem longe da linha de fronteira. Mesmo em rios pouco povoados, as bases estão literalmente dentro das aldeias.
Os militares, dezenas ou mesmo centenas de homens jovens, alguns recém saídos da puberdade, são agrupados longe de suas casas e encontram nesses espaços poucas possibilidades de satisfazerem suas necessidades culturais e seus instintos sexuais, somados a sede por viver sem limites a passageira juventude.
Ainda assim os problemas persistem e em muitos casos se agravam. Primeiramente porque vão se criando contradições dentro das comunidades, especialmente por alguma dependência econômica ou social ligada a presença militar. A principal delas se estabelece com as relações entre militares e comerciantes locais. Os comerciantes em geral defendem a presença militar por preverem perdas comerciais com sua retirada, tornando difícil o diagnóstico e solução do problema. E mesmo quando o problema é percebido com clareza pela comunidade e, desejosos de solução tomam partido, ainda devem suportar os sussurros preconceituosos de resíduos históricos, tais como a mentalidade de generais da reserva e de setores reacionários da sociedade em geral. Um exemplo vivo é o Gal. Augusto Heleno, que prega a militarização ou o loteamento privado dos territórios indígenas de fronteira, alegando riscos à soberania nacional.
Parece redundante explicar o resultado desse contato, mas cada dia me surpreende mais a gravidade dos fatos. De cara é possível verificar o agravamento do alcoolismo, do uso de drogas pesadas e a introdução de DST’s, com efeitos nocivos para os dois lados em questão. A gravidez de jovens e meninas sem paternidade assumida e a prostituição são cada dia mais freqüentes nas aldeias e comunidades onde se instalam os quartéis.
No caso específico dos povos do rio Uaupés, de família lingüística Tukano, a coisa é ainda mais grave, pois são povos de cultura patrilinear, ou seja, a identidade étnica é determinada pela identidade paterna. Mesmo que uma pessoa seja criada em comunidade indígena, falante de língua indígena, filha de mulher indígena, criada por um pai adotivo indígena, se o pai biológico não é indígena essa criança nunca será reconhecida como indígena, ainda que não tenha sequer conhecido o pai biológico.
Mais do que isso, há uma silenciosa crise pela falta de mulheres. Isso porque muitas moças se encantam com “os de fora” dificultando a união de casais das comunidades. Ou ainda, pela “adoção” de meninas que se tornam babás ou domésticas e acompanham as famílias dos oficiais transferidos de posto, atraídas por promessas de bons estudos.
Nas comunidades Yanomami, onde as mulheres estão no centro dos principais conflitos, já foram registrados vários problemas graves com os militares por conta de relações sexuais com moças e meninas, principalmente em Maturacá. O Distrito de Maturacá também foi palco de um dos mais impressionantes conflitos entre militares e indígenas, quando os Yanomami, revoltados com a abusiva prisão de um jovem líder em sua própria residência, dominaram o Pelotão Especial de Fronteira inteiro até que os militares libertaram o rapaz. Este fato enfraqueceu as relações com os militares que não são mais bem-vindos nas comunidades.
Em um movimento nem sempre consciente, os militares, para serem mais bem aceitos nas comunidades e pela opinião pública em geral, ofertam eventualmente atendimentos médicos e outros serviços que na verdade são direitos constitucionais dos quais as comunidades estão excluídas. Mesmo assim esses atendimentos não são constantes e muitas vezes os oficiais restringem o acesso ao atendimento por meses.
Ao perceberem os prejuízos, algumas pessoas e comunidades organizam como podem suas resistências, seja se afastando dos pelotões, seja restringindo a circulação de soldados em certos ambientes comunitários.
Maiká Schwade
Casa da Cultura do Urubuí, 28 de setembro de 2011