segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Sara

Inspirado em Calvino, segue a descrição de Sara, uma das cidades invisíveis que visitei no pensamento, como forma de estender sua existência para outras pessoas.
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Sara era uma cidade intrigante. A entrada era um grande espelho cuja moldura era composta por sentimentos involuntários dos seus habitantes. Cor, forma e textura que involucravam a moldura davam a ideia de como estava o humor dos citadinos. Todavia, isso era perceptível apenas para quem já havia estado em Sara, que era uma cidade de única visita: uma vez dentro, ou se mora nela ou, saindo, não mais é possível voltar. Também não é possível que alguém que já a visitou elucide o sentido dos sentimentos involuntários para outrem que lá nunca esteve. Após entrar no espelho era compreensível que não houvesse necessidade de voltar ali. A sensação era de completude e estranha compreensão total das relações que ali existem desde sua fundação. As várias versões de como a cidade surgira eram divergentes e complementares. A cada chuva, havia uma nova revelação sobre a história de Sara: o sol secava parte do chão de forma que, a parte que ainda ficava molhada formava algumas palavras que eram unidas no “grande abrigo das histórias jamais contadas em vão”. Ali essas palavras eram muito bem cuidadas como se fossem crianças. A intenção era que elas crescessem e se tornassem textos que iriam contar uma faceta da história de Sara. Havia voluntários para garantir o pleno desenvolvimento dos textos. Especial atenção era ofertada para uma fase equivalente adolescência humana. Nesta, as palavras sempre pensavam em desistir de virar textos históricos para ingressar em poesias pagãs de uns agitadores que, no passado, tentaram dar outros usos as palavras. Alegavam os mancebos sobre a possibilidade de se alcançar maior diversidade nas revelações se as palavras tivessem mais autonomia. Foram transformados em órfãs utopias. Os textos, já crescidos maduros e autônomos, revelavam, além dos acontecimentos e demais sensações de quem havia construído a cidade, novos usos para os espelhos nos quais as pessoas moravam. Acreditava-se que um dia aconteceria uma chuva que revelaria como voltar a cidade e todxs temiam que isso descontinuasse suas vidas naquele lugar que era composto somente por pessoas que não queriam ter que voltar para lá. Com tempo escasso, não consegui conversar com muitos textos no “grande abrigo das histórias jamais contadas em vão”. Mas conheci o revelador de como a moldura funciona. Não é possível explicar, pois é algo que só entende estando na cidade. Quem sai se lembra de tudo, mas vai esquecendo à medida que vai passando as informações para alguém seja de forma oral, escrita ou qualquer outro meio. Ou seja, já não lembro mais de nada que escrevi aqui. Ao tentar reler, a única coisa que conseguirei ver é um espelho. Um parágrafo em transição para se tornar um texto explicou que isso acontece, pois ninguém jamais sai daquela cidade antes de relatar tudo aquilo que absolveu de lá. Ensinar o caminho da cidade para outras pessoas era outra forma de esquecê-la completamente. Para quem nunca esteve em Sara, cada informação que recebe sobre a cidade é uma chance a menos de conhecê-la. Moraria em Sara, mas saí sem vontade de voltar por que sabia que jamais ela sairia de mim. E para morar em mim, não precisa renunciar nada. É bem mais fácil. Eu apenas não posso mais dizer nada. E também creio que não queiras mais saber.
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